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Cartografia do luto: jornalista registra casarões do Recife antes que eles sejam demolidos

Jornalista compartilha imagens de edificações antigas do Recife na página "Só vê quem vai a pé", no Instagram

Por Marília Parente

Jornalista Josué Nogueira faz inventário digital da cidade que pode sumir

Há pouco mais de dez anos, o jornalista Josué Nogueira registra e compartilha nas redes sociais fotografias de casarões antigos do Recife antes que eles desapareçam. Em seu perfil no Instagram, mais de 14 mil pessoas elaboram juntas o luto por uma cidade de jardins amplos, grades delicadas, além de detalhes em pedra, azulejos, vidro, dentre outros materiais correspondentes à época de cada edificação.

No Instagram, a página recebeu o nome de “Só vê quem vai a pé”, embora parte de seus admiradores já a acompanhassem com o nome de “Antes que Suma”, no preterido Facebook. “Comecei o projeto em meados de 2015, no período do Ocupe Estelita, em que houve muita efervescência no debate urbanístico da cidade”, lembra.

Os registros são feitos por diletantismo, sem grandes pretensões fotográficas, durante caminhadas a pé pelo Recife, muitas delas sem um destino específico. E o hábito de percorrer longas distâncias a pé (flanar, como dizem os franceses), especula Josué, pode ser resquício da vida no interior. “É quase uma coisa do nosso caráter”, resume.

Ele nasceu e viveu até os 15 anos de idade em Corrente, no extremo sul do Piauí. “No Recife, comecei morando na Boa Vista, e agora estou na Soledade [ambos bairros da área central]. Tenho uma tese: quem é do interior, sempre mora no Centro”, aposta.

Em seu inventário online da cidade, Josué já reúne diversas casas que não existem mais, a exemplo de uma residência projetada pelo arquiteto carioca Acácio de Borsoi, que ficava localizada no bairro de Santana. “Acho que a que mais doeu. Uma amiga ligou me pedindo para ir até lá correndo. A casa estava em processo de tombamento, o proprietário descobriu e derrubou às pressas”, relata.

Embora as casas presentes em sua cartografia da memória sejam antigas, Josué reconhece que elas disputam a paisagem da cidade no presente. “Na minha opinião, a cidade também forma pessoas do ponto de vista psíquico, emocional. Eu acho que quando a gente está em uma cidade, uma rua ou uma casa, a gente também está se constituindo como gente”, afirma Josué.

Em sua meditação solitária pelas ruas, ele busca treinar o olhar para as belezas escondidas entre arranha-céus, tráfego intenso e alto estímulo dos sentidos. “Tem casa que eu só vejo depois de três ‘passadas’ na frente. O portão é lindo, o jardim bem cuidado e você não olha. Caminhar pela calçada dissipa os pensamentos e te permite ver a cidade”, acrescenta Josué.

Com os registros, Josué espera documentar, para a posteridade, uma cidade que pode desaparecer. Dentre os seguidores da página, estão vizinhos das edificações, ex-moradores e outros observadores atentos, que a ele recorrem na tentativa de conservar as próprias memórias, individuais e coletivas, para a posteridade. "Não tenho a pretensão de salvar todas essas casas. Só quero que no futuro as pessoas saibam como era a cidade de hoje. Desse ponto de vista, é a elaboração constante de um luto", completa.