Os gigantes que ajudaram a construir uma história de 200 anos
A última reportagem retrospectiva dos 200 anos do jornal em circulação mais antigo da América Latina traz as grandes personalidades nacionais que passaram pela redação do Diario
Talvez 200 páginas não fossem suficientes para citar os grandes homens e mulheres que registraram a História nas páginas do Diario de Pernambuco, ao longo dos últimos dois séculos. A última reportagem da série retrospectiva do jornal em circulação mais antigo da América Latina é sobre aquelas grandes personalidades que fizeram o DP, na condição de colaboradores, articulistas, repórteres, colunistas ou editores.
Nascido no recém-instaurado império e ainda respirando os ares da Confederação do Equador (1824), o Diario de Pernambuco abriu espaço para o debate e divulgou textos e ideias abolicionistas e republicanos, com ilustres participações de Joaquim Nabuco e José Mariano.
No final da segunda década do século XX, o jovem advogado Barbosa Lima Sobrinho iniciava sua trajetória no jornalismo escrevendo artigos para o Diario de Pernambuco, na seção Tribuna Livre. Estreou, em 1919, com uma série de textos intitulada “A Inelegibilidade do Marechal”.
No mesmo período, o time de redatores do DP passava a contar com Assis Chateaubriand, que dava os primeiros passos no jornalismo antes de se tornar o dono do maior grupo de comunicação do Brasil na época, incorporando o próprio Diario de Pernambuco no conglomerado.
Gilberto Freyre, desde a sua juventude e até sua morte, Mário Melo...
As transformações políticas e sociais vividas no país, e relatadas no Diario de Pernambuco, passavam pelas mãos de nomes como Aníbal Fernandes. De redator, tornou-se diretor do jornal e foi responsável por manter o DP nos trilhos da defesa das instituições democráticas mesmo durante períodos conturbados e violentos, como a ditadura do Estado Novo de Vargas.
Anos 1960
Outros grandes nomes do jornalismo seguiram frequentando a redação da Praça da Independência, ou Pracinha do Diario como ficou mais conhecida pela população. Nos anos 1960, Pernambuco passaria a “exportar” jornalistas para o Rio de Janeiro e São Paulo.
Ricardo Noblat, que chegou a contar a história de uma vendedora de bilhetes premiados que perambulava pelo centro do Recife, na coluna Opinião, em 1967, foi um deles. Ângelo Castelo Branco, Geneton Moraes Neto, Gerson Camarotti...
Como dito acima, talvez 200 páginas não fossem suficientes para listar os grandes profissionais que construíram os dois séculos do Diario de Pernambuco.
Diario e Gilberto Freyre, um casamento de quase 70 anos
Bem longe da Praça da Independência, no bairro de Santo Antônio, centro do Recife, o mais longevo, produtivo e ilustre colaborador do Diario de Pernambuco escreveu os seus primeiros textos a serem impressos nas páginas do jornal em 1919. Gilberto Freyre fazia intercâmbio nos Estados Unidos quando deu início a uma parceria com Diario que duraria quase 70 anos.
“Da outra América” foi uma seção criada e alimentada pelo jovem Gilberto, onde compartilhava as suas primeiras impressões sobre a América e os norte-americanos.
“A "High school" ou gymnasio, ou ainda, escola superior, de Waco, está franqueada a todos os jovens promptos para sentar-se nos bancos do ensino secundario, sem distincção de sexo. A distincção de côr, essa é claro que exista numa parte do paiz apegada as tradições e nos preconceitos do passado.”
Aos 19 anos, Freyre relatava o funcionamento do sistema de ensino ianque já sob a luz também da sociologia. E foi assim por dezenas de textos, e assuntos, enviados à redação do Diario de Pernambuco, traçando paralelos entre o sistema, a cultura e os costumes da América de lá com a de cá.
De volta à terrinha, em 1922, Gilberto Freyre assumiu a condição de colaborador semanal, com artigos publicados nas edições de domingo. Seus laços com o Diario foram se estreitando, chegando a receber o convite para assumir o cargo de diretor de redação, o que viria a acontecer na década seguinte, quando o jornal foi incorporado ao Diários Associados, de Assis Chateaubriand.
Nas comemorações dos primeiros 100 anos do DP, em 1925, ele esteve à frente da produção do “Livro do Nordeste”, que reuniu artigos de principais intelectuais pernambucanos da época. A pedido de Freyre, Manuel Bandeira publicou um dos seus poemas mais conhecidos: “Evocação do Recife”.
Ao longo das décadas, a sua vivência, e intensa produção, no jornalismo, não só aguçou seu olhar para a cidade como o colocou numa posição diferenciada em relação aos outros importantes intelectuais do país na época, ligados a instituições acadêmicas.
O escritor e sociólogo, autor de clássicos com “Casa Grande & Senzala”, “Sobrados e Mocambos”, entre outros, teve papel marcante no jornalismo do Diario de Pernambuco e nas páginas do jornal escreveu até o final da sua vida.
Seu derradeiro artigo foi publicado no dia 19 de julho de 1987, um dia após falecer em decorrência de isquemia cerebral. Na edição, além do último texto do “Mestre de Apipucos”, o Diario de Pernambuco trouxe na manchete: “Gilberto agora é eterno”.
Geneton estreou no Diario aos 14 anos
Na seção “Tio Joca responde”, publicada no Júnior Suplemento Infantil, do Diario de Pernambuco, de 18 de abril de 1970, o recado direcionado a um dos futuros colaboradores do caderno: “Gostaria de receber os trabalhos datilografados. Ajudam o nosso trabalho. A próxima estória faça uma forcinha para passá-la para máquina. Aguarde a publicação.”.
Os primeiros textos do garoto, enviados à redação manuscritos, ganhariam a página do suplemento cerca de um mês depois, no dia 16 de maio. Em “Pânico-70”, uma crítica social aos Anos de Chumbo da ditadura de Médici:
“Cuidado! há um perigo na porta principal... um tiro... uma queda... o sangue escorrendo... um negro correndo: É culpado! a igreja se abre... o conjunto faz o enrêdo estou com mêdo... tudo mudou... o anúncio reluz: minha gente se reduz... tudo é treva; tudo é guerra...(...)”.
Em “A Guerra do Crescer”, uma análise premonitória do desenvolvimento da China (em meio à corrida espacial entre norte-americanos e soviéticos) nos primeiros meses do ano de 1970:
“Ao que parece, a corrida típica de há trinta anos do século XXI recebe mais um participante poderoso: a China. Embora nos últimos anos ela tenha se mostrado um pouco obscurecida no campo espacial, parece que trabalhou em silêncio, adquiriu experiência de outras nações mais amadurecidas, e agora, neste fim de abril, toma conta dos noticiários dos jornais e revistas, como mais uma nação que ambiciona infinito, indefinidamente acionada por desejos extraterrenos (...)”.
Aos 14 anos, o nome Geneton Moraes Neto apareceria pela primeira vez assinando textos na página de um jornal, a do Diario de Pernambuco.
Não se sabe se ele teria feito a “forcinha” e passado a datilografar na máquina os seus artigos dali em diante. Apenas os registros de que precocidade do garoto voltaria a aflorar em diversos outros textos publicados no suplemento Júnior: os primeiros passos de um dos mais geniais jornalistas brasileiros.
De colaborador a estagiário foi um pulo e, para repórter contratado, um passo. Cinco anos depois das primeiras palavras escritas a mão e endereçadas à redação da Praça da Independência, Geneton era enviado especial para reportagens especiais, aquelas de página inteira que saía aos domingos.
“Localizado pelo Diario, num casebre de taipa, no alto de um morro da Usina "Alegria", em Joaquim Gomes, Alagoas, Antônio de Brito conserva a lucidez, foge dos "remédios de farmácia” como o diabo da cruz e resgata da memória histórias dos tempos em que, o fuzil a tiracolo, varava os Sertões à procura de Lampião. Dessa época carrega uma funda cicatriz encravada no Joelho direito.”.
O jovem repórter, aos 19 anos, imprimiu nas páginas do Diario, da edição do dia 12 de junho de 1975, a capacidade de contar histórias singulares, como se estivesse proseando e os personagens parados na frente do leitor, juntando palavras com talento e sensibilidade.
“Voz rouca e pausada, pés descalços, cigarro de palha no canto da boca, Antônio de Brito Serrano, o trabalhador rural mais velho do Brasil, é, aos 136 anos, o protótipo do personagem mais rico de um romance que nunca se escreveu.”
Da Pracinha do Diario, onde funcionou durante décadas a redação, no centro do Recife, Geneton partiu para outros grandes veículos do país, como os jornais O Estado de São Paulo e O Globo, e a Rede Globo de Televisão.
Foi editor do Jornal Nacional e do Jornal da Globo, além de editor-chefe do Fantástico, acumulando prêmios com reportagens, livros e documentários.
A precocidade que o acompanhou no suplemento Júnior e como repórter do Diario marcou presença também na sua despedida. Com apenas 60 anos, sofreu um aneurisma da aorta e faleceu no dia 22 de agosto de 2016.
Geneton, no entanto, dizia que a principal função do jornalismo era produzir memória. O jornal em circulação mais antigo da América Latina compartilha e mantém viva a história de um dos seus mais geniais jornalistas.