Grafite torna Recife em local de manifestação e resgata pessoas em vulnerabilidade
Arte urbana tem ganhado mais espaço e incentivo por meio de reivindicações de grafiteiros, que colorem viadutos, parques e prédios
Ao atravessar o Recife é difícil não notar que a cidade vem se transformando em uma grande galeria a céu aberto. Murais que cobrem viadutos, fachadas e espaços públicos trazem figuras da história local, referências culturais e vozes antes invisibilizadas. O grafite tornou-se ferramenta de expressividade política, revitalização territorial e inclusão social na Região Metropolitana e capital.
Na última semana, o Recife participou do Baluarte 2025, evento internacional dedicado à arte urbana, criação contemporânea e diálogo cultural, na cidade do Porto, em Portugal. No evento foram compartilhadas experiências sobre políticas culturais e práticas de arte urbana. Além disso, a programação teve como foco temas prioritários como cooperação internacional, políticas públicas de arte urbana, urbanismo social, turismo e cultura.
O grafite é uma das principais artes urbanas e opera em diferentes camadas e trata-se de uma linguagem estética que ressignifica espaços, transformando fachadas monótonas, muros de contenção ou pilares de viadutos em narrativa visual. Grafiteiros defendem que este tipo de arte serve como instrumento de reivindicação simbólica e dá visibilidade a comunidades periféricas.
“O grafite se mistura à história das migrações, das populações negras, latinas e indígenas. Recife, como metrópole, também reflete isso. O grafite é um retrato da cidade. Por exemplo, lugares abandonados têm muitas pichações, o picho é um marcador social, um marcador de abandono. A maioria dos grafiteiros vem de comunidades, e isso marca o grafite como um movimento artístico diferente das linguagens tradicionais da arte visual, ele nasce na periferia. Além de ser uma expressão artística, o grafite é também uma forma de luta, é político por natureza”, afirma a grafiteira e artista visual pela UFPE Nathê Ferreira.
Este tipo de arte urbana também tem função na dinâmica das cidades, uma vez que murais atraem pedestres, reduzem sensações de insegurança e, quando integrados a políticas públicas, podem impulsionar turismo cultural e economia criativa local. Iniciativas no Recife mostram que programas públicos de murais e oficinas geram oportunidades para artistas locais e fortalecem o sentimento de pertencimento nos bairros. Na capital, o Colorindo o Recife visa promover a requalificação dos espaços urbanos da cidade através do graffiti e valorizar os artistas locais que já vêm utilizando a arte como instrumento de transformação social.
Além disso, o grafite dialoga com educação e formação por meio de oficinas em escolas, comunitárias e em equipamentos públicos que alimentam trajetórias artísticas e formas de renda, ao mesmo tempo em que criam espaços de diálogo entre moradores e poder público.
A atual moldura do grafite remonta às periferias de Nova Iorque nas décadas de 1960 e 1970, quando jovens urbanos passaram a inscrever seus nomes e imagens nas superfícies da cidade como forma de reconhecimento social e pertencimento. No Brasil, o fenômeno se intensificou a partir dos anos 1970 e 1980, especialmente em São Paulo, onde técnicas e linguagens locais incorporaram elementos do hip-hop, da política e das artes visuais.
Com o tempo, o grafite se ramificou por outras capitais e metrópoles brasileiras, adquirindo características regionais conforme dialogou com tradições locais, memória e movimentos culturais. No Recife, por exemplo, o desenvolvimento da cena urbana ocorreu de forma mais tardia e heterogênea. Enquanto a pichação e marcas de ocupação visual persistiam em muitos pontos, nos últimos 15 anos surgiram iniciativas organizadas, tanto de artistas quanto de políticas públicas, que promoveram murais de grande escala, editais e oficinas em bairros centrais e periféricos.
Programas municipais e editais de megamurais ajudaram a consolidar um acervo de obras na cidade. Essas iniciativas se intensificaram na primeira metade dos anos 2020. “Aqui no Recife, a gente vive um momento de profissionalização. Tem grafiteiro com mais de 20 anos de carreira que só agora está montando portfólio e vendendo obras, muito por conta da ascensão das redes sociais e do acesso ao celular. Antigamente, só dois ou três grafiteiros conseguiam romper barreiras e pintar para instituições ou galerias”, destaca Nathê Ferreira.
Resgate
O grafite tem se tornado uma alternativa para jovens em situação de vulnerabilidade em Pernambuco. A arte urbana, antes associada apenas à ocupação dos muros da cidade, hoje atua como ferramenta de inclusão social, afastando adolescentes do crime e das drogas e oferecendo novas oportunidades de renda.
Muitos jovens que antes não viam perspectivas agora encontram na pintura de murais uma forma de sustento e reconhecimento profissional. A grafiteira Nathê Ferreira conta que conquistou a casa própria e viagens internacionais por meio do grafite. “Eu vim de uma situação de muita vulnerabilidade, não tinha muitos sonhos nem perspectivas. Mas o grafite me transformou, me incentivou a entrar no ensino superior, me formar e atuar como educadora. O grafite também me levou a dois países diferentes e me fez inspirar uma nova geração de grafiteiras. Comecei a dar oficinas, e com o tempo, fui vendo novos artistas surgindo”, conta.
Grafiteiros também tentam resgatar crianças e jovens em situação de vulnerabilidade em comunidades e servem como porta de entrada para arte urbana. O grafiteiro Harrison Santos, de 25 anos, mora em Paulista e relata que, enquanto fazia uma pintura momentos antes da entrevista com o Diario foi abordado por crianças que ficaram curiosas com a técnica.
“Eu era uma pessoa que não tinha muitas perspectivas de vida, não tinha metas ou planos. Sempre trabalhei muito, mas não sabia o que fazer no futuro, enquanto profissão. Hoje dois meninos passaram por mim e me perguntaram o que eu estava fazendo. Já convidei pra ir pra uma oficina. Então, ao invés de irem pro lado errado, o grafite dá um propósito, uma perspectiva de vida e forma de expressão que muitos nunca teriam contato”, destaca.
Pichação vs. grafite
O grafite (obra muitas vezes negociada ou autorizada) não se caracteriza como pichação (marca, geralmente textual, com função de territorialização ou protesto). Embora ambos sejam formas de expressão urbana, têm gramáticas, finalidades e recepções públicas distintas.
O grafite tende a dialogar com técnicas e produzir imagens complexas, enquanto a pichação, historicamente, é mais ligada ao “tag” e à afirmação de identidade de grupos e, por isso, frequentemente criminalizada. No Recife, como em outras cidades, essa divisão nem sempre é clara no cotidiano urbano e os dois dividem o mesmo espaço.
A literatura e pesquisas locais apontam que tanto a pichação quanto o grafite exercem função social, pois denunciam, ocupam e produzem sentidos na cidade. A diferença está no modo como as políticas públicas e a legislação tratam cada expressão. Um estudo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), intitulado “Pixadores, Grafiteiros e Suas Territorialidades”, adentra as dinâmicas de apropriação urbana desses artistas.
O autor destaca que a maioria desses artistas vem das periferias urbanas, trazendo consigo experiências de marginalização e desejo de visibilidade. Suas ações, os “roles”, “mutirões” e “encontros das tintas”, criam novas territorialidades.
“A maioria dos grafiteiros daqui da Região Metropolitana do Recife vieram da pichação. Então, a gente mantém diálogo, porque estamos na rua, no mesmo ambiente urbano. A gente se encontra, troca ideia, se respeita. Acho que o respeito parte muito do local e das pessoas que o ocupam”, explica Harri Santos.
No estado há iniciativas legislativas que buscam reconhecer o grafite como manifestação artística de relevante valor e proteger práticas artísticas urbanas, embora o debate sobre autonomia artística e limites da intervenção pública continue em aberto.
O que diz a lei
Em Pernambuco, o grafite começou a ganhar reconhecimento legal como forma legítima de expressão cultural apenas nos últimos anos. Em 2021, o Projeto de Lei nº 2628/2021, apresentado na Assembleia Legislativa do Estado, propôs oficialmente o reconhecimento do grafite como manifestação artística de valor cultural pernambucano.
O texto, de caráter simbólico e político, visava solidificar o direito dos artistas urbanos à livre expressão, aproximando o Estado das diretrizes nacionais que tratam o grafite como linguagem artística e instrumento de inclusão social, e não como ato de vandalismo.
A proposta reforçava ainda a importância do grafite na valorização da identidade urbana e na promoção da cidadania, sugerindo que o poder público apoiasse ações de fomento e preservação de murais e painéis artísticos.
No interior do estado, esse movimento ganhou desdobramentos. Em 2022, a Lei Municipal nº 3.452, de Santa Cruz do Capibaribe, reconheceu oficialmente a pintura feita com grafite na paisagem urbana como manifestação cultural legítima. A norma local instituiu diretrizes para incentivo à arte de rua, prevendo que o município promova espaços destinados a intervenções artísticas e estabeleça políticas de valorização dos grafiteiros.
Santa Cruz do Capibaribe tornou-se uma das primeiras cidades pernambucanas a incluir a arte urbana em sua legislação cultural.