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O tetra começou aqui!

A décima primeira reportagem da retrospectiva dos 200 anos do Diario de Pernambuco mostra como a torcida pernambucana virou a chave e empurrou a então desacreditada a Seleção Brasileira rumo ao tetracampeonato na Copa de 1994

Por Carlos Lopes

Gesto iniciado no jogo do Arruda se repetiu até o título de 1994

O grito do “É tetra, é tetra” do então narrador da Rede Globo Galvão Bueno ecoa na memória de milhões de brasileiros que assistiram à Seleção Brasileira levantar a Taça Fifa na Copa do Mundo de 1994, nos Estados Unidos.

Mas até o craque italiano Roberto Baggio mandar a última cobrança de pênalti na arquibancada do estádio Rose Bowl, em Pasadena, na Califórnia, o torcedor brasileiro sofreu horrores, desde as Eliminatórias Sul-americanas.

A vaga para a Copa dos Estados Unidos foi carimbada apenas na última partida. A Seleção de Carlos Alberto Parreira fez uma campanha bastante irregular, sem apresentar um bom futebol, cravando dúvidas na esperança do torcedor a cada atuação.

O que ninguém duvida é que o tetra começou no Recife. Empurrado pela multidão que lotou o Arruda, o esquadrão nacional atropelou a Bolívia, jogando muita bola, e carregou as baterias da confiança para garantir a classificação nas Eliminatórias e levantar a taça na Copa dos EUA.

O calvário

O caminho da Seleção Brasileira nas Eliminatórias até a conquista da vaga para o mundial foi marcado por muita pressão, um futebol bem abaixo do que poderia mostrar e muito susto. O torcedor se perguntava se, pela primeira vez na história, o país ficaria fora de uma copa.

A desconfiança começou para valer mesmo quando, pela primeira vez na história, a Seleção sofreu uma derrota em jogos de eliminatórias. Após empate sem gols, em Guayaquil, contra o Equador, o time de Parreira foi jogar na altitude de La Paz e perdeu por 2x0 para a Bolívia.

A equipe, mesmo quando vencia, não convencia. Além do fraco desempenho e em uma incômoda posição intermediária na tabela, o torcedor brasileiro não engolia o fato do técnico deixar Romário de fora das convocações.

Parreira não perdoava o atacante. No ano anterior, ele havia dado entrevistas à imprensa reclamando por não estar sendo aproveitado durante jogos amistosos preparatórios. A punição do treinador foi não o convocar mais. No entanto, quem mais sofreu com a decisão foi o próprio escrete nacional.

Romário estava voando baixo na Espanha, assombrando a Europa com os golaços e jogadas geniais com a camisa do Barcelona. Seu primeiro El Classico, diante do sempre rival Real Madrid, o Baixinho fez simplesmente um had trick (3 gols em uma partida) na histórica goleada por 5x0.

A cada gol marcado por ele no Campeonato Espanhol, subia um grau na temperatura da panela de pressão em que estava a comissão técnica do Brasil. Ela chegou a ficar seriamente ameaçada de demissão, faltando poucas rodadas para o final das Eliminatórias.

Até quando vencia, o nome de Romário era gritado em coro nas arquibancadas, em meio a vaias e xingamentos a Parreira. Como na rodada anterior à partida no Recife, no Morumbi, em São Paulo. O 2x0 sobre o Equador não bastou para diminuir a revolta dos torcedores e as críticas da imprensa. O clima era tenso, nada amistoso.

Tudo mudou no desembarque da delegação brasileira nos Guararapes. Da recepção, no saguão do aeroporto, à tietagem na porta do hotel e presença em peso nos treinos, o calor do torcedor pernambucano acolheu uma seleção, até então, desacreditada e sem confiança.

A sinergia entre torcida e equipe ficou clara na entrada dos jogadores, de mãos dadas, no Arruda. Uma linda festa na arquibancada e uma atuação de gala em campo. A Seleção Brasileira arrancava para o tetra.


Uma seleção de mãos dadas com a torcida

Quase 100 mil torcedores nas arquibancadas do Estádio do Arruda naquela tarde do domingo. Ansiedade pura, posta para fora do peito com os gritos de “Brasil, Brasil, Brasil”. Até surgir o primeiro vestígio de uma camisa amarela chegando na boca do túnel central.

Era o início de uma festa que não terminaria após os 90 minutos, fora os descontos da partida. Teria continuação 10 meses e 20 dias depois, não mais no Arruda, mas em bom pedaço da cidade do Recife.

“A torcida pernambucana acreditou, fez festa e num clima de muita euforia transmitiu a energia que a Seleção Brasileira necessitava para redescobrir seu futebol alegre e objetivo. A ordem era vencer e o placar seria apenas uma consequência do que os jogadores mostrariam em campo, pois o que importava era vingar a derrota sofrida em La Paz. Uma vingança que veio com juros e correção. No final do jogo, o placar do estádio do Arruda registrava uma goleada de 6 x 0 do Brasil sobre a Bolívia. Um resultado que exorcizou o "fantasma" das Eliminatórias Sul-americanas.”

Contou o jornalista esportivo Claudemir Gomes, que poucos anos depois assumiria a editoria de Esportes do Diario.

“A Seleção Brasileira começou a partida na cadência da torcida. Os jogadores pareciam atender os gritos que vinham das arquibancadas. (...) Aos 12 minutos, Bebeto individualizou uma jogada e projetou-se na área, chutou e Raí se antecipou ao goleiro Trucco para marcar o primeiro gol brasileiro. Delírio no Arruda.”

Também levariam a multidão ao delírio Bebeto (2x), Muller, Branco e Ricardo Gomes. Mas foi o outro Ricardo da equipe, o Rocha, que teve um papel fundamental na mobilização do torcedor local em torno da Seleção.

Pernambucano, revelado no Santa Cruz, Ricardo iniciou a convocação dos seus conterrâneos logo após a partida em São Paulo, contra o Equador.

“Eu disse antes de chegar ao Recife, a todos os meus companheiros, que aqui era realmente o Brasil. Estariam todos do nosso lado e assim a situação ficaria mais fácil mesmo diante do líder do grupo e que estava invicto até então, ganhando todos os jogos que disputou. A tranquilidade seria total desde o momento que chegássemos ao Aeroporto. E não deu outra coisa”, festejou após o jogo.

O xerife da zaga nacional foi responsável também por implementar no grupo um gesto simples e potente, que viraria símbolo da união, repetido até o último jogo da Copa do Mundo dos EUA: a entrada em campo com todos os jogadores de mãos dadas.

Ricardo repetiu com a camisa amarela da Seleção o que havia feito como lateral direito do time do Santa Cruz, dez anos antes, na conquista do tri supercampeonato pernambucano.

Já os olhos de Parreira brilhavam com as luzes dos refletores do estádio após a partida. Uma emoção que misturava alegria, agradecimento e, bastante, alívio.

“Emocionado, o técnico Carlos Alberto Parreira disse que a Seleção Brasileira fez a melhor exibição sob o seu comando. Afirmou que o comportamento da torcida mexeu muito com ele”, relatou Claudemir, na conversa com o treinador na saída da delegação do estádio. Rumo ao tetracampeonato mundial.



O maior carnaval fora de época

Pouco menos de onze meses após a despedida da Seleção Brasileira do Recife, diante dos quase 100 mil torcedores presentes no Arruda, os então tetracampeões mundiais voltaram a desembarcar na cidade, com a taça na mão, e foram recepcionados por 1,5 milhão de pernambucanos.

“O Recife parou para receber os tetracampeões mundiais. A Polícia Militar, em sua estimativa, acredita que cerca de 1,5 milhão de pessoas assistiram ontem ao desfile da Seleção Brasileira. O Galo da Madrugada arrastou no Carnaval aproximadamente 1 milhão de foliões e esse recorde de público só poderia mesmo ser superado com a presença dos campeões do mundo”.

Relatou o texto que abriu o caderno de Esportes do Diario no dia 20 de julho de 1994. Como prometido, Recife seria o primeiro destino da seleção tetra mundial no retorno dos Estados Unidos, uma forma de agradecimento pela força dada no momento mais crítico que ela passara nas Eliminatórias.

Antes de pousar o DC-10 na pista dos Guararapes, o comandante Henrique Cibulska sobrevoou o Recife para mostrar à delegação brasileira a festa que a aguardava. Ao aterrissar e iniciar o taxiamento da aeronave, a sua cabine foi invadida pelo craque do mundial.

“Parei na pista e abri a minha janela. O Romário ficou com meio corpo para fora, agitando a bandeira”, contou o orgulhoso comandante.

O anfitrião Ricardo Rocha fez as honras da casa erguendo a taça para o torcedor pernambucano. Aos poucos, os jogadores e membros da comissão técnica foram se encaminhando para o carro dos Bombeiros que os levariam pelas ruas do Recife.

A comparação com o Galo da Madrugada citada na matéria inicial da cobertura não era apenas quantitativa. Com direito a bonecos de Olinda, fantasias e muita alegria, a multidão que acompanhou os tetracampeões mundiais no desfile festejava o maior e mais inesquecível carnaval fora de época.