O dia em que Elizabeth II reinou no Recife
A sexta reportagem da contagem regressiva para os 200 anos do jornal em circulação mais antigo da América Latina conta, com todos os detalhes, como às duas horas da passagem de Elizabeth II pelo Recife
“Elizabeth reina duas horas no Recife” era a manchete do Diario de Pernambuco em 1º de novembro de 1968, data que marcou o início da visita da rainha da Inglaterra, pela primeira vez, na América do Sul.
Ela desembarcou às 16h15 no Aeroporto dos Guararapes, a bordo da aeronave da Real Força Aérea inglesa, modelo VC-10, encontrou-se com o marido, o príncipe Philip, que chegara 15 minutos antes, vindo do México, onde se realizava os jogos olímpicos.
O casal seguiu em carro-aberto por Boa Viagem, em direção ao Palácio do Campo das Princesas. Após a recepção oficial, partiu para o Porto do Recife e, por volta das 18h30, embarcou no iate real Britannia, da Marinha Inglesa, rumo a Salvador.
Em 11 dias, a rainha da Inglaterra visitou seis cidades brasileiras. A sexta reportagem da contagem regressiva para os 200 anos do jornal em circulação mais antigo da América Latina conta, com todos os detalhes, como foram as duas horas da passagem de Elizabeth II pelo Recife.
Desembarque real
Ainda na pista do Aeroporto dos Guararapes, a rainha Elizabeth e o príncipe Philip, o Duque de Edimburgo, cumprimentaram o governador de Pernambuco, Nilo Coelho, e a esposa, além de outras autoridades. Mas não perderam tempo.
Logo ela tomou o seu lugar no conversível Lincoln Continental, modelo 1933, carro de luxo do governo do estado utilizado em momentos especiais, e teve a companhia de Nilo Coelho.
“Cerca de 200 mil pessoas ovacionaram calorosamente, ontem, a rainha Elizabeth II, desde o momento em que o cortejo real deixou o aeroporto dos Guararapes, às 16 e 40, até a sua chegada no Palácio do Campo das Princesas, que ocorreu precisamente às 17 e 30”, relatava a matéria do Diario.
Uns gritavam de “God save the queen”, outros, “Deus salve a rainha”. Segundo o texto, na saída dos Guararapes, um grupo tentou se aproximar do Lincoln, mas foi contido pela força policial.
A Avenida Boa Viagem estava lotada, dos dois lados da pista. Muitos ainda com trajes de banho disputavam, aos empurrões e cotoveladas, o lugar mais próximo do meio fio da calçada. A comitiva foi ovacionada assim que o primeiro veículo foi avistado.
Os recifenses agitavam bandeiras do Brasil e da Inglaterra, distribuídas pouco antes por “uma caminhoneta chapa-branca”. A rainha acenava e distribuia sorrisos.
Para não comprometer a pontualidade britânica, em determinado momento a comitiva aumentou a velocidade e ganhou o centro da cidade.
“No trecho entre a rua São João e Concórdia, a soberana foi entusiásticamente recebida pelo povo. O duque de Edimburgo, entretanto, mantinha-se sério, sem responder às ovações: “Broto”, dirigiam-lhe galanteios, especialmente colegiais”.
As cenas se repetiam a cada rua e avenida que o Lincoln percorria, até chegar ao Palácio do Campo das Princesas, sede do governo estadual, onde foi oferecida a recepção para a família real.
À luz de velas
No Palácio, a rainha Elizabeth foi apresentada a personalidades como o escritor e sociólogo Gilberto Freyre e o arcebispo de Olinda e Recife, dom Hélder Câmara, além de políticos e pessoas da alta sociedade pernambucana. Ela provou, e aprovou, o suco de pitanga, fruta a qual desconhecia.
A recepção à soberana inglesa corria perfeitamente, dentro dos protocolos, até que, de repente, as luzes se apagaram. Soube-se, logo depois, que o blecaute teria sido causado por uma pane no transformador da Chesf, no Bongi.
O constrangimento tomou conta do salão do Palácio do Campo das Princesas. Menos para o casal real. O príncipe Philip pegou um dos candelabros e seguiu iluminando o caminho para Elizabeth II.
A reportagem do Diario trouxe em detalhes o burburinho que o incidente causara. O então deputado estadual Marco Antônio Maciel, líder do governo na Assembleia Legislativa, soltou: “O acender dos candelabros dá a este histórico encontro um magnífico toque vitoriano".
O também deputado, mas da oposição, Geraldo Pinho Alves, líder do MDB no Legislativo, também não perdeu a piada: “No escuro, não poderei ser cassado”.
Já arcebispo dom Hélder Câmara, averso às formalidades, aproveitou a falta de luz para sair de fininho, rompendo protocolos. Ao repórter do DP, comentou que iria merendar em uma lanchonete na Pracinha do Diario.
A energia foi restabelecida já perto do casal se despedir da sede do governo pernambucano e seguir para o Porto do Recife, onde embarcaria no iate real Britannia, da Marinha Inglesa, com destino a Salvador.
A rainha acena para o Diario
No percurso a caminho do Palácio do Campo das Princesas, o cortejo real deixou a Avenida Guararapes, em direção à Praça da Independência. Após fazer o contorno nela, a rainha da Inglaterra se deparou com o prédio do Diario de Pernambuco, bem iluminado, com a faixa “Welcome Elizabeth”, uma enorme imagem sua e a bandeira da Inglaterra.
O governador Nilo Coelho, ao seu lado no Lincoln, apontou para a edificação e comentou que ali havia sido a escola jornalística de Assis Chateaubriand, fundador dos ‘Associados’: “O antigo embaixador da Corte de Saint James e grande amigo da Casa Real e do povo inglês”, contou o chefe do executivo estadual à reportagem do Diario.
A rainha Elizabeth II pediu que o carro parasse, de imediato. Voltou-se para a sacada do prédio, onde redatores e gráficos do jornal acenavam para ela. Por aproximadamente dois minutos, ela respondeu de volta também com acenos e sorrisos.
Cerca de cinco de mil pessoas que estavam na Pracinha do Diario aplaudiram a soberana inglesa. Gritos de ‘Viva a rainha’ e ‘God save the queen” ecoaram no local.
Nilo Coelho relatou à reportagem do DP que, durante o trajeto até o Palácio, conversou com a rainha sobre Assis Chateaubriand e “disse-lhe que o “Diario” sempre foi um baluarte das liberdades universais”, como conta a matéria publicada no dia seguinte à visita real.
Chateaubriand foi embaixador do Brasil na Inglaterra em 1955. Dois anos antes, ele havia estado em Londres para o evento de coroação da própria rainha Elizabeth II e a presenteado com um par de brincos.
“(Nilo) Lembrou-lhe, inclusive, que, durante a segunda guerra, o velho e sempre novo jornal sustentou, como nenhum outro do Norte do Brasil, a causa das nações aliadas, o que lhe valeu, depois da paz, uma alta distinção: Medalha do Rei, conferida pelo pai de Elizabeth, Jorge VI, ao ex-diretor do nosso jornal, Anibal Fernandes.”
Instituída pelo rei George VI, em 23 de agosto de 1945, a Medalha do Rei por Serviços à Causa da Liberdade foi concedida a cidadãos e entidades estrangeiros civis que prestaram serviços com méritos em defesa dos Aliados, diante dos nazistas, durante a Segunda Guerra Mundial.
O jornal em circulação mais antigo da América Latina foi condecorado com a honraria da realeza britânica.
A cobertura do Diario
Não é todo dia que se recebe a rainha da Inglaterra. A visita real foi o grande evento do Recife (e das outras cinco cidades visitadas no Brasil) naqueles anos finais da década de 1960, marcados pela violência e perseguição política.
A cobertura do Diario de Pernambuco foi proporcional à expectativa e à pompa do acontecimento. A edição do dia 2 de novembro trouxe nada menos que oito páginas internas no primeiro caderno, sem falar no enorme espaço destinado ao assunto na capa.
Na página 2, o título “Povo recifense explode de entusiasmo à chegada de Elizabeth” abriu a cobertura da chegada do casal no Aeroporto dos Guararapes, trazendo em detalhes todo cerimonial que cercou a recepção.
A página seguinte mostrou como a rainha foi recebida pela população no trajeto pelas ruas e avenidas do Recife: “200 mil pessoas aclamaram nas ruas a Soberana inglesa”.
A terceira destacou aspectos econômicos, lembrando as relações comerciais entre Brasil e Inglaterra. Os tumultos daqueles anos de ditadura, com a segurança pública voltada à guarda da rainha, foram destacados na quarta página.
A recepção no Palácio do Campo das Princesas, com a falta de luz, os bastidores, e a despedida no Porto do Recife preencheram a quinta página.
As sextas e sétimas foram páginas gráficas, no chavão jornalístico. Ou espaço repleto de imagens, fazendo uma retrospectiva das duas horas em que a rainha esteve no Recife, destacando a simplicidade e a simpatia de Elizabeth.
Para fechar, o programa completo do casal real nas outras cinco cidades brasileiras que iriam visitar, antes de partir para país vizinhos na América do Sul.
A rainha Elizabeth e o príncipe Philip chegaram a voltar ao Recife dias depois, mas apenas como escala para o retorno a Londres.