° / °
Cadernos Blogs Colunas Rádios Serviços Portais

Aumento de reconstruções de face após acidentes de moto preocupa profissionais do Hospital da Restauração

Especialistas do setor de cirurgia e traumatologia bucomaxilofacial percebem um aumento gradativo desses pacientes ao longo dos últimos quatro anos, o que coincide com a chegada da Uber Moto e 99 Moto

Por Jorge Cosme

Exame realizado com paciente no Hospital da Restauração.

Belmiro Vasconcelos, com 39 anos de carreira, fica irritado ao transitar de carro pelo Recife. Ao parar nos semáforos, puxa o celular e começa a tirar fotos.

"Dos Aflitos para Boa Viagem, 33 minutos aqui registrado, eu vi cinco pessoas em moto cometendo infração. As cinco tinham que ser detidas e ter as motos apreendidas. Não há fiscalização", ele reclama em áudio.
A frustração é compreensível. Cada motociclista imprudente é um potencial paciente de Vasconcelos.

Coordenador da residência em cirurgia e traumatologia bucomaxilofacial do Hospital da Restauração (HR), no Recife, ele tem se assustado com a quantidade de pessoas que chegam com lesões na face em decorrência de acidente de moto.

“De uns quatro anos para cá, aumentou a prevalência de pessoas que chegam ao hospital por causa de acidente de moto. Se você tem 10 acidentes que chegam aqui, seis ou sete são de moto em média”, ele diz.

Vasconcelos, que também é presidente do Colégio Brasileiro de Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial (CTBMF), cita alguns fatores que podem explicar o aumento de acidentes com moto: necessidade de emprego, que faz com que uma parcela da população recorra a trabalho de motociclista por aplicativo; qualidade ruim do transporte público; ausência de educação de trânsito continuada; e fiscalização insuficiente.

Os serviços de Uber Moto e 99 Moto chegaram ao Recife entre o final de 2021 e o início de 2022. "É uma questão de saúde pública. Eu acho que o governo deveria atuar imediatamente, porque aguentar todo o grosso de acidente da região metropolitana não é fácil”.

“Quando as pessoas vêm criticar o HR a mim, eu fico muito bravo”, ele diz. “Agora, não dá para um plantão que deveria atender 100 pessoas atender 300”.

Segundo a assessoria do HR, 653 pessoas foram admitidas no serviço de cirurgia e traumatologia bucomaxilofacial da unidade de março de 2024 a fevereiro de 2025. Desse total, 467 pacientes foram internados por causa de traumas diversos. Cerca de 78% dos internados precisaram passar por procedimento cirúrgico.

"Só na nossa área, hoje, tem 11 pacientes vítimas de acidente de trânsito. Fora os que estão em outro setor, com traumas nos braços, pernas, cabeça”, diz Carlos Lago, chefe do serviço de cirurgia e traumatologia bucomaxilofacial do HR. “E isso é todo dia. Eu brinco que a gente enxuga gelo aqui: opera 10, tem 11; opera 11, tem 12”.

“Não quero mais andar de moto”, diz homem que sofreu três acidentes pilotando

O vendedor Marcos Correia, de 41 anos, tem três placas de alumínio de 1,5 milímetro e 15 parafusos na face. São duas placas de metal no braço direito. Três acidentes de moto.

Em 2015, foi a primeira vez que ele passou por uma cirurgia de reconstrução de face. Em Timbaúba, na Mata Norte, colidiu de frente com um motociclista alcoolizado.

"Eu quebrei o dedo da mão esquerda e fraturei a parte esquerda do rosto, afundando a sobrancelha”, ele lembra. Ele foi atendido no HR por Belmiro Vasconcelos.

Dez anos depois, em fevereiro deste ano, Marcos bateu com a moto na traseira de um caminhão na BR-232, entre Goiana e Igarassu. Fraturou a mandíbula. Viu-se encharcado de sangue e achou que iria morrer. Passou por uma nova cirurgia com Belmiro Vasconcelos no HR.

"Eu não quero mais andar de moto. Pode ser para um lugar perto, mas eu não vou mais de moto. Eu sempre gostei, mas esse último caso gerou uma mudança muito significativa em mim. Eu me desesperei na hora”, comenta.

Reconstrução de face

Um paciente que sofre uma fratura no rosto pode passar de dois meses na Unidade de Pronto Atendimento (UTI), principalmente em caso de lesões conjuntas.

"Se for só um trauma na face e ele estiver estabilizado, de três a cinco dias a gente consegue cuidar dele aqui. Agora, se for associado com crânio, membro inferior, aí vai um mês, dois, quatro meses", calcula Carlos Lago, chefe do serviço de cirurgia e traumatologia bucomaxilofacial do HR.

As sequelas decorrentes de uma lesão na face podem envolver perda de visão e dores continuadas.
"A gente está com dois casos recentes agora, pacientes na faixa de 20 anos, todos acidente de moto. Os dois perderam a visão", lamenta Carlos Lago.

Belmiro Vasconcelos também destaca o aspecto estético.

"O paciente pode ter na região frontal, além da fratura, uma lesão. Por mais que a gente faça uma plástica, vai ficar uma cicatriz. Uma cicatriz pode ocupar metade do rosto. Vai ficar para o resto da vida. Alguém aí vai empregar uma pessoa que tem essa cicatriz? É um complicador", comenta.

"Já vi casos de mulher deixar marido, marido deixar mulher, da pessoa ficar desempregada depois. Alguns dizem que a sociedade olha para eles com outra visão", completa.

As cirurgias bucomaxilofaciais não são da especialidade médica. "O procedimento de reconstrução de face é feita por um cirurgião-dentista especialista em cirurgia e traumatologia bucomaxilofacial, que faz uma residência de três anos, 8.640 horas, em dedicação exclusiva, 60 horas por semana. É uma formação longa e suada e muito bem preparada”, explica Vasconcelos.

Questionado se costuma andar de moto, Vasconcelos diz que sua relação com o meio de transporte mudou com sua profissão.

"Eu não ando de moto porque trabalho em uma unidade de trauma e eu vejo os acidentes graves decorrentes da moto. Eu prefiro minha vida a uma moto", conta.

O dentista Carlos Lago é mais sucinto. "Se eu andar de moto serei degolado lá em casa."

 

Mudança de perfil

Em 2022, a moto era o meio de locomoção da vítima em 73,8% dos sinistros registrados em Pernambuco, segundo o Sistema de Informação sobre Acidentes de Transporte Terrestre (Sinatt), da Secretaria Estadual de Saúde (SES). A proporção aumentou em 2023 (74,3%) e em 2024 (76,5%).

De janeiro a junho deste ano, a taxa reduziu 1% (75,5%), mas uma mudança tem sido percebida. "Uma questão que a gente percebeu, comparando os dados de 2024 com 2025, é que 2024, a Geres 8, que tem o município de Petrolina e outros do Sertão, ficou em primeiro lugar em relação ao número de vítimas. Porém, até junho de 2025, a gente mudou esse perfil e a Geres 1, que está em primeiro", explica Jackeline Diniz, coordenadora do Comitê Estadual de Prevenção a Acidentes de Moto (Cepam).

"Está havendo um aumento significativo nesta região. E é nela que há a maior presença de pessoas que utilizam aplicativos de entrega e transporte", complementa.

Diniz diz que os números não devem resultar na condenação desses trabalhadores, mas faz um apelo para que tenham mais segurança.

Segundo ela, há um esforço para associar a profissão da vítima que sofreu acidente de moto. A expectativa é que a partir do final do ano a Secretaria Estadual de Saúde (SES) tenha um mapeamento de quantos estavam a serviço de aplicativos de entrega e transporte no momento do acidente.

A coordenadora do Cepam afirma não ter uma opinião sobre proibição ou restrição de aplicativos como Uber e 99. "Eu acho que a gente precisa fazer melhores estudos sobre isso. Não tenho uma opinião formada ainda e penso que é muito cedo para se falar em proibição", avalia.

"A questão do aplicativo, seja por moto ou carro, é algo novo no mundo. Não há tantos estudos profundos. Eu preciso pensar não só no trânsito em si, tem a implicação econômica, implicação social e da vida particular e do coletivo", ela continua.

"Aqui no meu conforto, na minha casa, no meu emprego, pode ser fácil para mim dizer que sou contra. Mas se eu tivesse do outro lado, se eu perguntar ao motociclista, será que ele vai dar a mesma opinião que a minha? Acredito que não".