Setúbal, Roda de Fogo e mais: conheça os "não bairros" do Recife
Capital pernambucana tem 94 bairros e 60 localidades que não são oficialmente reconhecidas pela gestão. Senso de pertencimento da população pede por distinção destes lugares
Embora não apareçam no mapa oficial, ao menos 60 localidades do Recife, como Setúbal, Roda de Fogo e Alto do Céu, carregam forte identidade comunitária e funcionam como bairros no dia a dia. Criadas a partir de ocupações, transformações urbanas ou referências históricas, essas áreas não têm reconhecimento administrativo, mas concentram comércio e vida social próprios. Os moradores lutam para preservar o nome e o pertencimento.
O Recife teve sua divisão feita em 1988 com o decreto municipal 14.452, que instituiu 12 RPAs (Regiões Políticas Administrativas) agrupadas em zonas, sendo elas: RPAs 01 e 02 (Zona Centro), RPAs 03 e 04 (Zona Norte), RPAs 05 e 06 (Zona Noroeste), RPAs 07 e 08 (Zona Oeste), RPAs 09 e 10 (Zona Sudoeste) e RPAs 11 e 12 (Zona Sul).
Por meio delas, a gestão municipal analisa e decide onde serão feitas políticas públicas e sobre a instalação de equipamentos como escolas e postos de saúde.
Quando o comerciante José Antônio, de 76 anos, chegou na comunidade Roda de Fogo, no bairro de Torrões, Zona Oeste do Recife, a localidade ainda não tinha o nome pelo qual é chamada hoje. Ele relata que mudou-se para uma casa durante a invasão que ocorreu em meados da década de 1980 e hoje mora na rua que divide Torrões e Roda de Fogo.
“Quando eu vim morar aqui já estavam invadindo, mas a minha barraca não era aqui não, era lá embaixo. Eu morava na Rua Professor José Joaquim de Almeida e quando cheguei aqui tinha muita poça d'água e cheio de buracos. Hoje em dia tem gente que até corrige quem chega perguntando se aqui é Torrões”, conta Antônio.
O comerciante hoje mora na Rua Maestro Jones Johnson, cuja placa de endereçamento consta como parte dos Torrões, apesar da bússola de pertencimento dos moradores não apontar para esta direção.
O nome da localidade surgiu de uma novela produzida pela TV Globo nos anos de 1986 e 1987, abordando temas como corrupção, poder e ética empresarial no contexto pós-ditadura militar. O espaço começou a se desenvolver após a ocupação de famílias em uma área de 60 hectares que pertencia ao governo federal.
Mesmo com pressões para que deixassem o local, os ocupantes persistiram por meio de passeatas e assembleias até conquistarem a concessão do uso da terra. A comunidade resistiu e desenvolveu um senso de pertencimento, que deu origem a nomes de ruas, garantia de lotes e escritura da casa própria.
“Quando chovia, a gente saía com água pela cintura. Eu perdi muitas coisas aqui. Não podíamos comprar os pedaços de terra e se a gente comprasse, tinha que dizer que a pessoa que vendeu era da nossa família. Passamos por muitas dificuldades aqui. Quando cheguei aqui já era conhecido como Roda de Fogo, mas só tinha barracos de tábua, não tinha água, luz e nem poste. As coisas começaram a mudar em 1991, quando foi loteado”, relembra a dona de casa Jerusa de Santana, de 62 anos, que mora há 37 anos em Roda de Fogo.
Setúbal esteve quase lá
Setúbal e Boa Viagem têm nomes diferentes, mas, oficialmente, são o mesmo bairro, pelo menos por enquanto. Boa Viagem faz parte da 6ª Região Político-Administrativa (RPA), e Setúbal ainda não é reconhecido como bairro independente.
Apesar de não existir oficialmente na divisão política da cidade (definida pela Lei nº 16.293 de 1997), Setúbal já é visto pelos moradores como um bairro próprio. Essa identidade local pode, no futuro, ser reconhecida de forma oficial.
Na RPA, estão incluídos os bairros Boa Viagem, Brasília Teimosa, Imbiribeira, Ipsep e Pina, mas não Setúbal.
O crescimento de Boa Viagem para além do Canal de Setúbal, que corta a parte sul da região, fez surgir uma área com características próprias, com mais arborização e variedade de serviços, diferente da beira-mar.
“Moro em Setúbal há 18 anos. Morava anteriormente em Boa Viagem, próximo ao colégio Santa Maria, num apartamento pequeno, quando minha esposa ficou grávida do nosso segundo filho resolvemos procurar um local maior e que nos proporcionasse uma melhor qualidade de vida. E foi isso que encontramos em Setúbal, boa vizinhança, comércio em desenvolvimento e melhor segurança na época”, conta o gerente de projetos Leonardo Sodré, de 48 anos, que deixa claro o desejo para que a localidade seja reconhecida como um bairro.
“Percebo um senso maior de pertencimento ao nosso bairro em comparação a Boa Viagem. Percebo um esforço integrado em combater a criminalidade, melhorando iluminação, comunicação entre os condomínios, e apoio da segurança pública de nossa cidade. Já tivemos representante na Câmara de Vereadores do Recife, onde ações foram direcionadas aqui para o nosso bairro, mas certamente se ele fosse oficialmente reconhecido teríamos muito mais força para melhorias e bem estar dos moradores”, complementa.
Setúbal fica na parte mais ao sul de Boa Viagem e é cortado pelo Canal de Setúbal, localizado na Avenida Visconde de Jequitinhonha. Essa avenida liga a região ao município de Jaboatão dos Guararapes. Pontes sobre o canal facilitam a passagem de pedestres de um lado para o outro.
A empreendedora Rachel Motta sempre morou em Setúbal, mas conta que quando os pais dela se mudaram do Rio de Janeiro para o Recife a localidade ainda não tinha este nome.
“Eu acho que a luta deveria ser por melhores condições para cidade como um todo e para o bairro de Boa Viagem como um todo. Isso perpassa por questões como trânsito, melhoria de iluminação e melhoria viária”, afirma.
“Não bairros” do Recife são 60
Entre os “não-bairros” mais conhecidos do Recife, alguns nomes saltam aos ouvidos de qualquer morador. A Linha do Tiro, por exemplo, é citada há décadas e figura em listas populares como referência geográfica, apesar de nunca ter sido oficializada.
A Bomba do Hemetério, com história ligada a uma antiga estação de bombeamento, mantém viva a memória mesmo fora do mapa legal. O Sítio dos Pintos conserva o nome de uma antiga propriedade rural, enquanto a Mustardinha sobrevive no vocabulário popular e em placas de comércio, mas não no registro municipal. Já o Engenho do Meio leva um nome histórico, mas é apenas uma subdivisão de outro bairro.
Outras localidades, como o chamado Centro Histórico, abrangendo o Recife Antigo e arredores, funcionam como referência para a população, embora sem status administrativo próprio.
O Coque, dentro da Ilha Joana Bezerra, também não é reconhecido como um bairro da capital e sofreu com o crescimento demográfico desordenado, tendo boa parte dos moradores em situação de vulnerabilidade social. O nome da comunidade faz referência aos primeiros habitantes do local, que viviam da extração do carvão mineral, conhecido como coque. As terras do local foram doadas por aristocratas recifenses para a expansão da cidade.
No Alto do Pascoal, dentro do Alto Santa Terezinha, o nome sobrevive nas conversas, mas nunca ganhou emancipação oficial. O local, antes chamado de Terra dos Colombos, surgiu a partir da Ladeira de Pedra, no que hoje é Água Fria, e se expandiu a partir dele. Hoje, o Alto do Pascoal conta com escolas e projetos de infraestrutura da gestão municipal.
Um outro exemplo é Jardim Caxangá, menção frequente em endereços informais e na memória local. Apesar disso, não consta como bairro na estrutura geopolítica da cidade. Da mesma forma, Jardim Botânico, Jardim Europa e Jardim Petrópolis são localidades amplamente usadas em conversas e anúncios, mas ausentes da divisão administrativa.
Ainda há o Sítio das Palmeiras, mencionado por moradores como denominação local, mas desconhecido nos mapas administrativos. Ao menos 60 localidades amplamente utilizadas pela população como referência, como Alto do Céu, Beira Rio, Alto do Burity, Ilha de Deus, Ipiranga e Pacheco não fazem parte da divisão formal de bairros da cidade.
De acordo com Mariana Asfora, presidente do Instituto da Cidade Pelópidas Silveira, “criar um bairro é um procedimento que tem muitas consequências para o município e para os moradores. Para fazer isso em uma área consolidada, como Setúbal, implicaria em alterações de todo o planejamento administrativo da cidade, porque há divisão de equipamentos urbanos, de saúde e de cobertura de educação. Por exemplo, quando é instituído um novo bairro, as matrículas dos imóveis precisam ser retificadas e seria necessário atualizar o cadastro dos imóveis, mudar endereço e índices da análise de planejamento”.
Ela explica que, em casos de bairros maiores, é importante que haja uma divisão a fim de entender as particularidades de cada localidade. Como o bairro de Casa Amarela, por exemplo, que incluía tanto a parte de planalto como a área de Morro. Tinha-se um bairro gigante e a prefeitura não conseguia fazer uma avaliação de alcance de políticas públicas”, esclarece.
Confira os locais que não são bairros no Recife, segundo o censo de 2010:
- Alto do Brasil
- Alto da Brasileira
- Alto do Burity
- Alto do Capitão
- Alto do Carroceiro
- Alto do Céu
- Alto dos Coqueiros
- Alto do Deodato
- Alto 12 de Fevereiro
- Alto do Eucalipto
- Alto do Formoso
- Alto do Pascoal
- Alto do Progresso
- Alto do Refúgio
- Alto do Reservatório
- Alto Santa Isabel
- Alto 13 de Maio
- Barreira do Rosarinho
- Beira Rio
- Benfica
- Bomba Grande
- Brasilit
- Buriti
- Campo Alegre
- Capunga
- Chão de Estrelas
- Coque
- Córrego da Areia
- Córrego do Bartolemeu
- Córrego da Bica
- Córrego do Caruá
- Córrego do Euclides
- Córrego do Joaquim
- Ilha de Deus
- Ilha de Joaneiro
- Inocoop
- Ipiranga
- Jardim Beira Rio
- Jardim Boa Viagem
- Jardim Botânico
- Jardim Caxangá
- Jardim Dom Bosco
- Jardim Europa
- Jardim Imbiribeira
- Jardim Juçara
- Jardim Petrópolis
- Jardim Santo Antônio
- Jardim São Sebastião
- Jardim Teresópolis
- Monsenhor Fabrício
- Pacheco
- Pinheiro
- Ponte d'Uchoa
- Roda de Fogo
- Setúbal
- Sítio das Palmeiras
- Vila Cardeal e Silva
- Vila Mauriceia
- Vila do Sesi
- Vila Tamandaré