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26 anos sem o Dom da Paz

Às 22h20 da sexta-feira, dia 27 de agosto de 1999, Dom Hélder Câmara faleceu, vítima de uma insuficiência respiratória

Por Carlos Lopes

Dom Hélder Câmara

Por meio de sorrisos, olhares e gestos com os braços, Dom Hélder Câmara se comunicava com as irmãs religiosas que o acompanhava em sua residência, nos fundos da Igreja das Fronteiras, na Boa Vista. Mesmo fragilizado por uma pneumonia, aos 90 anos, seguia distribuindo afeto. Às 22h20 da sexta-feira, dia 27 de agosto de 1999, ele faleceu, vítima de uma insuficiência respiratória.

Ou como Clériston ilustrou em sua charge publicada na primeira página do Diario de Pernambuco, dom Hélder não morreu. Apenas mudou de paróquia. A despedida do Dom da Paz é a quarta reportagem da contagem regressiva para os 200 anos do jornal em circulação mais antigo da América Latina.

“Ele compreendeu que era chegado o momento”, lembrou à reportagem do Diario o pároco de Casa Forte, José Edvaldo Gomes, que fazia companhia ao ex-arcebispo de Olinda e Recife, além da secretária Zezita Cavalcanti, do médico particular Ciro Andrade Lima e as irmãs.

O padre Edvaldo, que convivia com Dom Hélder há mais de 30 anos, foi o escolhido pelo arcebispo para servir como uma espécie de porta-voz e responsável de cuidar dos seus últimos desejos.

Como poder descansar em paz longe de um leito de hospital, de onde havia tido alta cinco dias antes, e, dentre outros, como ser enterrado na Igreja da Sé, em Olinda, ao lado do ex-auxiliar o bispo Lamartine Soares. O que aconteceu em cerimônia realizada às 17h do sábado.

Antes, o padre Edvaldo cumpriu outro desejo, durante o velório. Segundo o pároco de Casa Forte, Dom Hélder era o amigo das flores e elas estavam em grande número enfeitando o seu corpo no caixão.

Em suas mãos, o terço presenteado pelo papa João Paulo II, em sua passagem pelo Recife 19 anos antes. A Igreja das Fronteiras abriu as portas às 2h da madrugada para receber o povo pernambucano no adeus ao Dom da Paz. Do Amor e da Justiça Social.


O Dom que mudou a Igreja Católica no Brasil

A chegada do Dom da Paz à capital pernambucana não poderia ter envolvido uma atmosfera mais explosiva. Havia se passado apenas dez dias do golpe de 1964,em meados do mês de abril. O governador de Pernambuco, indicado pela ditadura militar, Paulo Guerra, foi buscá-lo pessoalmente no Rio de Janeiro, onde Dom Hélder era bispo, com a companhia do comandante do IV Exército.

Se a intenção era intimidar o novo Arcebispo de Olinda e Recife, já conhecido por suas ideias e práticas progressivas no sentido aproximar a Igreja Católica dos menos favorecidos, não deu muito certo. Dom Hélder foi recebido com festa na chegada, mas, de pronto, deu o seu recado:

“Ninguém pretenda me prender a um grupo, ligar-me a um partido, tendo como amigos os seus amigos e querendo que eu adote as suas inimizades”. Como descreve a matéria da página de Últimas, do sábado, 28 de agosto, do Diario, onde episódios marcantes da vida do arcebispo foram lembrados.

Aquele cearense, de baixa estatura e corpo franzino, chegava à capital pernambucana para assumir uma arquidiocese pronto para uma guerra. Como ele mesmo definiu, a única guerra legítima, aquela contra a miséria e a ignorância. Uma guerra onde usaria a coragem e as palavras como armas, o amor e o desejo por justiça como munição.


“Não demorou para entrar na lista negra dos generais. Visitando presos políticos, criticando a tortura, a violência policial, despertou a ira dos militares. O envolvimento de pessoas de sua equipe com a fuga de perseguidos políticos era proporcional ao aumento da violência policial”, contava a matéria do dia seguinte a sua morte.


“Seu nome não podia nem aparecer nas reportagens de rádios, jornais e TV. Para denunciar o desrespeito aos direitos humanos no Brasil, aproveitava os convites de universidades do exterior”.


Sua luta por justiça social e defesa dos direitos humanos o fez ser indicado ao Prêmio Nobel da Paz por quatro vezes, de 1970 a 1973. Não ganhou porque o governo militar brasileiro fez de tudo para sabotar a sua premiação, temendo sujar ainda mais a imagem do país, na lama da repressão e violência.


Azar do Prêmio Nobel que não pode condecorar o arcebispo de Olinda e Recife. O propósito de Dom Hélder passava longe do desejo por titulações ou bajulação. Ele queria era estar junto do povo, falando cara a cara com o mais necessitado, disseminando amor e solidariedade.


Ele queria mudar a Igreja Católica, ou como ela enxergava os seus fiéis mais humildes e como era vista por eles. E conseguiu vitórias representativas desde a criação da Confederação Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB), quando ainda estava no Rio de Janeiro, e durante a passagem por 35 anos em Pernambuco.

Como foi o adeus ao Dom da Paz na cobertura do Diario


Dom Hélder faleceu depois das 22h da sexta-feira, horário em que a maioria das redações do país estava fechando a edição do sábado e, paralelamente, deixando praticamente pronta a do domingo.


A triste notícia da partida do ex-arcebispo de Olinda e Recife deu início a mudanças radicais no planejamento das duas edições. Poucas, para não dizer nenhuma outra, figuras públicas eram capazes de gerar tanto carinho e admiração quanto Dom Hélder Câmara.


Não se tratava apenas de noticiar o seu falecimento, mas de fazer justiça e homenagear o Dom da Paz, levando muito mais para o leitor do Diario de Pernambuco.


“Hélder, o Dom da Paz, morre aos 90”, foi a manchete da primeira página da edição do sábado.


Duas páginas inteiras foram publicadas na seção de Últimas (notícias), trazendo para o público os seus momentos derradeiros, a sua linda e rica trajetória de vida e a forte repercussão em todos os meios.


Os títulos “A opção ‘radical’ pela Justiça” e “Padre dos Pobres segue em paz” ilustram bem o que as páginas A9 e A10 ofereciam sobre Dom Hélder.


A edição de domingo veio com a cobertura do enterro do ex-arcebispo, em Olinda, na Igreja da Sé, como era o seu desejo. E as diversas manifestações de carinho e mensagens de solidariedade mundo afora, como a do papa João Paulo II, e pelo Brasil, com o luto oficial decretado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso.


Trouxe também polêmicas. Elas acompanharam o Dom da Paz até no último momento. A possibilidade do então Arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso, rezar as missas dedicadas a Dom Hélder deixou a ala progressista da Igreja Católica em Pernambuco indignada.


Dom José, ligado à ala conservadora, era acusado de perseguir os progressistas e destruir bases pastorais organizadas pelo seu antecessor. Prevendo o risco de confrontos, o Vaticano foi cirúrgico e diplomático.

Enviou, de Brasília ao Recife, o núncio apostólico Alfio Rapizzarda, que rezou a missa solene na Igreja da Sé.