° / °
Cadernos Blogs Colunas Rádios Serviços Portais

Arrepiante ‘A.I.L.A’ traz medo e questões contemporâneas em um horror brasileiro

O game recebeu atenção nacional e internacional conforme novidades de seu desenvolvimento eram divulgadas, movendo milhares de entusiastas e prometendo ser um dos grandes lançamentos de horror do ano, sensibilizando até o cenário internacional.

Por Antônio Gois

A.I.L.A é um jogo de terror psicológico brasileiro.

O Brasil é berço de diferentes tipos de produções em games. O mercado independente, do qual grande parcela dos criadores brasileiros faz parte, é um enorme caldeirão de ideias onde são misturadas muita vontade, criatividade e colaboração.

Sejam de esforços únicos ou conjuntos, a criatividade acerca da produção brasileira de games sempre vem acompanhada de muito suor e da já clássica ‘quebra de obstáculos’ onde, muitas vezes, apoio da comunidade se faz necessário para alavancar projetos e tirar ótimas ideias do papel, como é o caso de ‘A.I.L.A’, mais novo lançamento da Pulsatrix Studio (Fobia - St. Dinfna Hotel).

O game recebeu atenção nacional e internacional conforme novidades de seu desenvolvimento eram divulgadas, movendo milhares de entusiastas e prometendo ser um dos grandes lançamentos de horror do ano, sensibilizando até o cenário internacional. Não era para menos. Abordando temas contemporâneos como Inteligência Artificial, assistentes virtuais e o sempre presente pessimismo em relação ao futuro, a Pulsatix surpreendeu ao montar um time de artistas de peso e tentar amarrar uma história ambiciosa unida a uma gameplay digna do espaço que o game quer ocupar.

No jogo, tomamos o papel de Samuel, um beta tester de jogos que recebe a missão de atestar a qualidade de A.I.L.A, a mais nova máquina de uma empresa gigante da tecnologia que promete revolucionar o modo como as pessoas jogam videogame e interagem com o jogo. A IA, que toma a forma de uma simpática jovem, quer estreitar os laços com seu testador a medida em que o apresenta novos mundos criados para medir seus limites, fazendo com que realidades reais e virtuais colidam em experiências assustadoras.

A.I.L.A

Não tem como ‘A.I.L.A’ ser mais fruto do seu tempo do que o que temos aqui. No game, somos apresentados a um mundo sombrio, praticamente limitado ao apartamento bagunçado e completamente automatizado de nosso protagonista, Samuel. Ele é um homem imperfeito e misterioso, que aparentemente só quer fazer seu trabalho em paz. Ao seu redor, somos introduzidos a um mundo - estranhamente palpável - onde as barreiras entre IA’s e humanos praticamente não existem mais. A máquina prepara seu chá, apresenta telejornal, ocupa espaços na política e entrega comida dentro da sua casa, uma realidade não totalmente pertencente a séculos no futuro, mas sim a 2035, ano em que a história se passa.

Toda essa presença é tratada de forma natural e o game faz questão de que nos sintamos confortáveis, fazendo com que os comportamentos humanos e bagunçados de Samuel pareçam o verdadeiro bichinho na goiaba, aquilo que não deveria estar ali.

Essa dualidade se torna mais expressiva ainda quando somos apresentados à forma corporal de A.I.L.A, o mais novo lançamento da Sytekk, gigante da tecnologia nos moldes do que temos como Amazon ou Google. A.I.L.A, (acrônimo para Inteligência Artificial para Aplicações Lúcias, em inglês) logo nos apresenta sua boa vontade e simpatia, com seus olhos multicoloridos e jeito inteligente.
Logo podemos perceber que os dois criam uma química real e até mesmo inédita. Ele se abre para ela e vice-versa, gerando interações verdadeiramente interessantes, trazendo temas pessoais e filosóficos, que servem de coberta para uma sutil disputa de controle. Tudo isso é proporcionado pelas interpretações excepcionais de Luiza Caspary (Ellie, de The Last of Us) e Fabio Azevedo (Kyle Crane, da franquia Dying Light), que brilham do início ao fim nessa dupla de relação inusitada.

Aila - se os devs me permitem uma licença para nomeá-la assim - se mostra carismática e inteligente, atributos potencializados por suas expressões faciais, detalhes visuais apurados e diálogos de tons adoráveis e sutis. Samuel, por outro lado, fala palavrões e parece esconder muito do jogador, mas se mostra disposto o suficiente para as ideias da IA, o que ganha quem o controla - além do fato de o jogo se passar em primeira pessoa, nos fazendo imersos naquele mundo logo de cara.

Desse modo, ‘A.I.L.A’ faz tudo que propõe ser interessante. As ‘experiências’, como a própria IA se refere aos níveis do jogo, são muito bem feitas, roteirizadas e têm a duração adequada. Em cada um deles, somos apresentados a um novo mundo: Samuel se transforma em um comandante medieval, em um pirata ‘davyjonesco’, em um perdido na floresta, entre outras realidades. Tudo isso para voltar ao apartamento bagunçado quando tira os óculos de realidade virtual.

A dualidade constante entre verdade e ficção, intercaladas pelas interessantes interações com Aila, sempre põe à prova a questão do controle. O game faz questão de explorar noções de poder, a medida que Samuel sustenta um vício que o faz psicologicamente frágil e, no que poderia ser seu escape, uma IA mede forças com ele o tempo todo, o desafiando usando a justificativa de que aquelas repetições o faria mais ‘imerso’ nas experiências, o que realmente acontece, mesmo que isso continue deixando a pulga atrás na orelha de que, na verdade, estamos sendo manipulados. No começo é impossível não pensar “uau, queria uma A.I.L.A para mim”, até você não querer mais.

Muito disso vem das escolhas que o game nos propõe. Desde o primeiro momento, somos desafiados a poupar ou matar, salvar ou deixar, entre outros dilemas. Contando com 6 finais (mais um secreto), as escolhas vão moldando quem o nosso Samuel vai se tornar e como Aila nos vê, promovendo uma metalinguagem e uma discussão interessante sobre o presente e o futuro das relações entre humanos e seus entretenimentos.



Fugindo um pouco da questão subjetiva e partindo para a gameplay, podemos dizer com certa tranquilidade que temos aqui um grande acerto. O game mistura bem a ação com combate, ambientação, level design e puzzles, nunca se tornando chato ou repetitivo, mas usando das experiências para sempre apresentar novos inimigos, armas e mecânicas. O horror, trazido pelo gore, técnicas de iluminação, maravilhosos efeitos sonoros e dinamismo do combate, assusta e diverte bastante, nos fazendo sempre questão de lembrar que o game se trata de um terror psicológico, que se traduz muito bem na jogabilidade.

O game também explora jumpscares, que são acertados, se destacando por sua criatividade na execução - em especial os efeitos sonoros ligados a estes, que constroem tensão e geram pulos da cadeira em um simples ‘psiu’ -, mas podem se tornar um tanto repetitivos pelo modo como são feitos, já que, em uma fase em especial, somos pegos algumas boas vezes por monstros atrás de obstáculos, o que funciona nas primeiras vezes, mas não nas outras cinco ou seis.

O combate, que funciona aqui como pilar do jogo, pode dividir boa parte dos jogadores, embora minha percepção sobre ele seja majoritariamente positiva. As armas de fogo funcionam muito bem em sua completude: os tiros saem fácil, o controle é equilibrado e a munição, abundante. No combate corpo a corpo, porém, temos algumas questões. A variedade de armas é extremamente positiva e surpreendente, dado o escopo do jogo, porém, como o alcance dos inimigos é consideravelmente grande, o uso das armas de curto alcance como martelo ou maça faz o jogador ficar exageradamente vulnerável, com o tempo de resposta não acompanhando a agilidade requerida. Mas, novamente, a variedade salva nesse aspecto, já que também podemos portar espadas e machados, por exemplo, que funcionam muito melhor - aproveito para reforçar a abundante disposição de munição, o que faz com que o combate corpo a corpo fique realmente à escolha do jogador.

A resolução rápida dos problemas também ajuda na velocidade do jogo, com a grande maioria dos puzzles sendo tranquilos. Além disso, durante as cenas de cutscenes em que somos apresentados às escolhas, acredito que a caixa de texto disponível poderia passar por uma reformulação, dando mais destaque para a dualidade e ao peso do que devemos decidir. Por fim, ainda é bom destacar que o game traz ótimas animações para ações do personagem (como a da cura ou desembainhar a espada) que, por serem tão boas, deixam o gostinho de que mais delas estivessem disponíveis em mais momentos.

Com relação à sua performance, o game também não falha, mas também não é perfeito. Em um PC mediano, onde pude testar o jogo, experimentei alguns travamentos, mas sem quedas de frames e com, infelizmente, um crash. Por outro lado, na maioria das vezes, a experiência foi fluida e com uma taxa de quadros alta e estável, inclusive nas cutscenes.

Não é surpresa nenhuma dizer que estou muito satisfeito com ‘A.I.L.A’, que claramente é o resultado de muito carinho e trabalho por parte da Pulsatrix. Seus visuais, ideias e conceitos são muito bem explorados, com o jogo abraçando o escopo que tem, sem nunca esconder suas inspirações, mas sabendo ser digno e original, criando histórias imersivas que devem ficar na cabeça de quem os testa por um bom tempo.

É muito difícil não se impressionar com Aila e Samuel, grande parte por suas interpretações, mas também pelos seus textos inteligentes e dinâmicos. O mundo que os envolve também se torna interessante ao redor deles, o que me deixou animado para futuras aparições deste universo e, por que não, de mais experiências.

Nota: 82

*Uma chave do jogo foi enviada pela Pulsatrix Studio para a produção desta análise.