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Bolsonaro é condenado por lei que ele próprio sancionou em 2021

Ex-presidente foi sentenciado por crimes contra o Estado de Direito com base na lei 14.197, criada para substituir a antiga Lei de Segurança Nacional e endurecer punições a atentados contra a democracia

Por Cecilia Belo

Uma mulher com uma bandeira brasileira participa de uma festa de rua para celebrar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de condenar o ex-presidente Jair Bolsonaro no centro do Rio de Janeiro, em 12 de setembro de 2025. Em 11 de setembro, o STF condenou o ex-presidente Jair Bolsonaro a 27 anos de prisão por conspiração golpista, ao final de um julgamento histórico que dividiu o país e provocou a fúria dos EUA.

O julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) foi marcado por uma ironia notável: ele foi condenado com base na lei que ele próprio sancionou em 2021. A Lei nº 14.197, que revogou a Lei de Segurança Nacional (LSN), uma herança da ditadura militar, introduziu a tipificação de crimes como golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Foi com base nesses dispositivos que o Supremo Tribunal Federal (STF) sentenciou Bolsonaro à prisão em regime fechado na última quinta-feira (11).

A Lei nº 14.197/2021 é o resultado de um longo processo legislativo. Sua origem remonta ao Projeto de Lei (PL) 2462/91, proposto em 1991 pelo jurista Hélio Bicudo com o objetivo de substituir a LSN, uma legislação de 1983 vista como uma herança do regime autoritário. A principal meta da nova norma foi modernizar o arcabouço jurídico-penal, integrando os crimes contra o Estado Democrático de Direito diretamente ao Código Penal. Sancionada em 1º de setembro de 2021, a lei marcou uma mudança de paradigma, abandonando a proteção do "Estado-aparelho" em favor da tutela das liberdades individuais, e garantindo explicitamente que a manifestação crítica, o jornalismo e os protestos não são crimes.

O ex-presidente também foi considerado culpado por liderar organização criminosa armada, causar dano qualificado ao patrimônio da União e deteriorar bens tombados. O julgamento pela Primeira Turma do STF contou com um voto divergente, do ministro Luiz Fux, e quatro a favor, dos ministros Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Flávio Dino e Cristiano Zanin, formando a maioria para condenação do réu, com pena de 27 anos e 3 meses de reclusão.


Vetos presidenciais

A medida foi aprovada em um cenário de tensão acentuada entre o governo Bolsonaro e as instituições democráticas. No momento de sua sanção, o então presidente vetou três dispositivos: a criminalização da disseminação de notícias falsas ("fake news"), o aumento da pena para militares que cometessem crimes contra o Estado Democrático de Direito e a ampliação das punições em casos de crimes cometidos com o uso de arma de fogo, violência ou por agentes públicos. Na época, a justificativa apresentada foi a de que esses trechos poderiam limitar manifestações de grupos conservadores ou impor um tratamento mais rigoroso às Forças Armadas.

Democracia em risco

A aprovação da lei se deu em um contexto de escalada de declarações e iniciativas de caráter autoritário. Em 2021, um projeto de lei do então líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo (PSL-GO), buscava conceder poderes excepcionais a Bolsonaro sob o pretexto da pandemia. O próprio ex-presidente chegou a sugerir publicamente a possibilidade de um “autogolpe”, declarando em 14 de abril de 2021 a aliados no Palácio da Alvorada: "O pessoal fala que eu devo tomar providência, eu estou aguardando o povo dar uma sinalização". Adicionalmente, nos primeiros dois anos de seu mandato, a Lei de Segurança Nacional foi utilizada 285% a mais em comparação com o mesmo período dos governos Dilma Rousseff (PT) e Temer (MDB), resultando em 77 investigações que visavam opositores e críticos do governo.

Interpretações jurídicas

Para o cientista político Felipe Ferreira Lima, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a substituição da LSN pela Lei nº 14.197 representou um avanço significativo, pois a nova norma restringe a vagueza de termos e tipifica de forma mais clara os crimes contra a democracia. Contudo, ele ressalta que o julgamento de Bolsonaro marca a primeira aplicação desses dispositivos em um caso de grande repercussão, o que, por sua vez, pode abrir margem para debates jurídicos.

Lima aponta que ainda existem lacunas, como a diferenciação entre os crimes de Golpe de Estado e de abolição violenta do Estado de Direito. “Essa é a primeira vez que esses artigos são aplicados em um processo de tamanha relevância e a ausência de definição mais precisa pode favorecer diferentes interpretações”, afirmou.

Felipe observa ainda que a antiga legislação era objeto de questionamentos, pois seus traços autoritários davam margem a interpretações e usos amplos para perseguir opositores do governo. Ele conclui: "Muitos críticos questionavam como é que uma Constituição democrática, com tantos valores que permeiam a democracia envolvidos nela, recepciona essa lei da segurança nacional que carregava".