Uma nação em busca de um líder conciliador
A reação nas redes sociais à campanha publicitária estrelada pela consagrada atriz Fernanda Torres, no papel de garota-propaganda de uma marca de sandálias, é um episódio revelador do ambiente político-ideológico vivido hoje no Brasil
A reação nas redes sociais à campanha publicitária estrelada pela consagrada atriz Fernanda Torres, no papel de garota-propaganda de uma marca de sandálias, é um episódio revelador do ambiente político-ideológico vivido hoje no Brasil.
A mensagem publicitária — “não comece o ano com o pé direito” — foi rapidamente capturada pela lógica da polarização e interpretada como uma provocação política dirigida contra a direita brasileira.
O que se seguiu foi uma reação devastadora contra a marca. Vídeos, depoimentos, recados, animações e manifestações espontâneas multiplicaram-se em ritmo impressionante, demonstrando que não se tratou de um ruído marginal, mas de um movimento orgânico, amplo e altamente engajado.
Não é um fenômeno comum. É, de fato, surpreendente pela intensidade, pela criatividade e pela velocidade com que se espalhou.
Esse episódio desperta, mais uma vez, curiosidade e reflexão sobre o processo político recente no Brasil e, sobretudo, sobre a leitura equivocada que determinados setores — em especial departamentos de marketing, ambientes culturais e veículos de comunicação — fazem da opinião pública.
Ao optar por esse tipo de mensagem, a marca parece ter se apoiado nas narrativas de grupos formadores de opinião que acreditam representar uma maioria social consolidada em torno de determinadas pautas ideológicas. Esse diagnóstico revelou-se falho.
Há aqui um ponto central: a arte, quando se propõe a ser universal, simbólica e atemporal, dificilmente sobrevive incólume quando se deixa capturar por uma agenda ideológica explícita.
Sempre que um artista — seja ator, cantor, compositor ou autor — abandona essa posição de transcendência e assume, ainda que de forma alegórica ou indireta, uma preferência política clara, ele passa a ser rejeitado automaticamente por todo o segmento da sociedade que se opõe àquela visão. Trata-se de um fenômeno inevitável, quase mecânico, e suas consequências também o são.
Nesse mesmo contexto, insere-se o episódio envolvendo o cantor Zezé Di Camargo.
Ao cancelar sua apresentação de fim de ano em uma grande rede de televisão — em sinal de protesto contra a presença de integrantes do staff do governo e do Supremo Tribunal Federal na inauguração de uma nova fase do noticiário da emissora — Zezé reagiu de forma clara e pública a uma decisão editorial que ele interpretou como politizada.
Sua atitude produziu imediata repercussão nas redes sociais, aprofundando ainda mais o ambiente de polarização.
À esquerda, multiplicaram-se manifestações de repúdio ao cantor; à direita, formou-se um movimento intenso e organizado de apoio, com declarações públicas, campanhas espontâneas e estímulo à presença do artista em shows e eventos.
O resultado concreto é revelador: Zezé Di Camargo continua sendo amplamente solicitado para apresentações pelo país, ao mesmo tempo em que surgem indícios de um boicote informal por parte das grandes emissoras de televisão aberta, em aparente solidariedade ao protesto simbólico feito pela rede de TV alvo de sua decisão.
O caso da sandália e o episódio envolvendo Zezé Di Camargo, quando analisados em conjunto, tornam-se objetos riquíssimos de estudo.
Ambos revelam os riscos da politização da arte, da publicidade e do entretenimento, bem como o descompasso entre a percepção de hegemonia ideológica em certos círculos culturais e a realidade plural — e conflitiva — da sociedade brasileira.
As redes sociais, nesses episódios, funcionaram como amplificadores de sentimentos, produzindo reações que desafiam leituras simplistas sobre consenso, maioria e controle do imaginário público.
Mais do que episódios isolados, tratam-se de sinais eloquentes de um país profundamente dividido — e de como subestimar essa divisão, seja no marketing, na arte ou na comunicação, pode gerar efeitos imediatos, contundentes e duradouros.
No fundo, os episódios envolvendo Zezé Di Camargo e a campanha da sandália revelam um Brasil profundamente fragmentado, que carece urgentemente de um estadista capaz de reconciliar a sociedade, reduzir tensões e promover a união nacional, em vez de seguir estimulando rivalidades e antagonismos. E, além disso, que saiba calçar as sandálias da humildade.
Angelo Castello Branco - Membro da Academia Pernambucana de Letras