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O pensamento autoritário é binário

Todo pensamento autoritário é binário.

Por Maurício Rands

Todo pensamento autoritário é binário

Todo pensamento autoritário é binário. Durante a ditadura, no colégio São Luís, eu não entendia a música que tocava no recreio: “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Perguntava-me por que deveríamos sair do país se não o amássemos. Parecia-me que amar era algo que devíamos consagrar aos nossos pais e à menina que mal olhava para nós. Depois, ao ver um “abaixo a ditadura” num muro, perguntei a papai: “ditadura não havia apenas na Uganda de Idi Amin Dada?”

Hoje, uns amam, outros odeiam o STF. Detestam-no todos os que não gostam dos indígenas, dos gays, da igualdade racial e do empoderamento feminino. Também os que adoram arminhas ou acham que a ultradireita nunca tramou uma intervenção militar. Amam o Supremo os que perderam as esperanças de avanço social nos costumes diante de um Congresso Nacional retrógrado, assim como os que reconhecem o papel do STF na preservação de uma democracia que esteve ameaçada por gente que chegou ao poder graças a ela.

A semana foi pródiga em desmentir a lógica do amor ou ódio. O ministro Fachin atraiu elogios ao anunciar que vai promover um código de conduta para os seus colegas — informado que deve estar sobre o que fizeram os seus pares no verão passado. O ministro Flávio Dino autorizou o avanço das investigações contra parlamentares corruptos, vendedores de emendas que sequestraram o orçamento federal. Determinou operação na principal assessora de Arthur Lira, o poderoso ex-presidente que hoje opera nas sombras.

Mas foi esse mesmo tribunal que envergonhou o país ao ver um de seus ex-presidentes, o ministro Toffoli, viajando num jatinho para assistir ao jogo do Palmeiras com um advogado de sócio do Banco Master, para logo depois aceitar a competência do STF para o caso e decretar o sigilo máximo no processo. Mas foi mera coincidência: só falaram dos infortúnios do amado Palestra Itália.

A opinião pública não ficou menos irritada ao saber que Viviane Moraes e os filhos do ministro Alexandre Moraes tinham um contratinho de R$ 3,6 milhões mensais com o mesmo Banco Master que acabara de surrupiar dezenas de bilhões dos fundos de aposentadoria dos servidores do Rio, do DF, do Amapá e de Maceió. A lista de desvios é longa.

A justa indignação cidadã contra esses abusos de ministros do STF é dupla. Primeiro, pela imoralidade em si. Depois, porque a má conduta de seus membros enfraquece a legitimidade das suas decisões — e isso debilita a punição à corrupção, ao golpismo e aos abusos do pior Congresso Nacional da história.

Mas a realidade não é binária. Nem toda instituição é sempre certa ou errada, justa ou injusta, honesta ou desonesta. Na mesma semana, o mesmo ministro da competente família de advogados brinda o país com uma decisão irretorquível, depois do vexame da Câmara ao aprovar uma anistia parcial disfarçada de “PL da dosimetria” e de manter o mandato de uma nobre deputada foragida, em desobediência à decisão expressa da instituição que a Constituição mandou falar por último em questões constitucionais.

Alguns se apressaram a enxergar um inexistente erro técnico na decisão do ministro Alexandre Moraes. A Câmara estaria certa porque a condenação de Carla Zambelli teria que ser apreciada pelo plenário, já que a hipótese do inciso VI do art. 55 da Constituição Federal — “perderá o mandato o deputado ou senador que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado” — deveria estar submetida ao procedimento do § 2º do mesmo artigo, ou seja, à decisão por maioria absoluta do plenário da Casa.

Não viram os apressados que a condenação da deputada pelo STF na AP 2428, transitada em julgado, foi expressa ao determinar a perda do mandato com base no § 3º do referido dispositivo constitucional. Sim, nessa decisão a deputada também foi condenada com base no inciso IV do art. 55, que prevê a suspensão dos direitos políticos. Ou seja, a decisão do STF — que deve ser cumprida por força da Constituição — foi clara ao determinar que a Mesa da Câmara, e não o plenário, deveria praticar o ato declaratório vinculado de perda do mandato da parlamentar.

Quando o presidente e o plenário da Câmara deliberaram pela manutenção do mandato de Carla Zambelli, descumpriram a decisão definitiva do STF e, portanto, violaram a Constituição Federal. Quando o ministro Alexandre Moraes decidiu anular a deliberação inconstitucional, estava tecnicamente correto. Afinal, todos devem obediência à decisão definitiva da Corte Suprema. Se o Poder Legislativo a descumpre, quem mais também não vai querer descumprir as decisões judiciais?

“A mão que afaga é a mesma mão que apedreja”, como disse o poeta Augusto dos Anjos. Numa mesma semana, o STF acertou e errou em diferentes deliberações, provando que a realidade institucional não é binária. A democracia é complexa. Suas instituições erram e acertam. Não são perfeitas nem imperfeitas sempre. O tudo ou nada se coaduna mais com o pensamento autoritário e antidemocrático.

Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade Oxford