Quando o Legislativo Decide Não Legislar
Em 8 de outubro de 2025, a Câmara dos Deputados tomou uma decisão que, embora formalmente legítima, revela um perigoso esvaziamento de sua função constitucional
Em 8 de outubro de 2025, a Câmara dos Deputados tomou uma decisão que, embora
formalmente legítima, revela um perigoso esvaziamento de sua função constitucional:
optou por retirar de pauta uma Medida Provisória editada pelo Poder Executivo.
O gesto, que impediu a análise do conteúdo e da constitucionalidade da norma, não é mero
ato procedimental. Trata-se de um sintoma preocupante — o da renúncia à própria função
de legislar.
O que são as Medidas Provisórias
As Medidas Provisórias (MPs) estão previstas no artigo 62 da Constituição Federal. Elas
permitem ao Presidente da República adotar normas com força de lei em situações de
relevância e urgência, mas exigem apreciação imediata pelo Congresso Nacional.
O Parlamento tem sessenta dias, prorrogáveis por mais sessenta, para deliberar. Caso não
o faça, a MP caduca — perde eficácia desde a data de sua edição.
As MPs são instrumentos excepcionais de intervenção legislativa pelo Poder Executivo,
admitidos apenas em contextos de necessidade concreta. Sua legitimidade, portanto,
depende, ao final, do controle político e jurídico exercido pelo Parlamento.
Ao prever esse mecanismo, o constituinte buscou conciliar a celeridade administrativa com
o controle democrático, preservando o princípio da separação dos Poderes (art. 2º, CF/88).
O dever de deliberar
A separação entre Executivo, Legislativo e Judiciário não cria hierarquia, mas exige
cooperação e contenção recíproca. O Parlamento, por representar o pluralismo social,
exerce papel central: legislar, fiscalizar e debater os rumos do Estado Democrático de
Direito.
O artigo 44 da Constituição define o Congresso Nacional como o órgão de exercício do
Poder Legislativo da União, composto pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal.
Já os artigos 48 e 59 colocam as Medidas Provisórias entre as espécies normativas do
processo legislativo — ao lado das leis ordinárias, complementares, delegadas, decretos
legislativos e resoluções.
Em suma, deliberar é a essência da função legislativa. A omissão não é neutra: é uma forma
de abdicação institucional. Quando o Parlamento se recusa a decidir, compromete a
harmonia e o controle recíproco entre os Poderes, pilares do Estado republicano.
A caducidade de uma Medida Provisória deve ser consequência de impasse real — não
de conveniência política disfarçada de inércia. Ao abrir mão de deliberar sobre uma
Medida Provisória, o Parlamento não apenas posterga o debate público — ele abdica de
sua razão de existir como espaço de decisão e representação democrática
A escolha de não decidir
Ao retirar de pauta uma MP, a Câmara dos Deputados renunciou a seu papel de decidir.
Transformar a omissão em estratégia política fragiliza o princípio da responsabilidade
democrática e esvazia o papel representativo do Parlamento.
Uma democracia constitucional exige um Legislativo ativo, disposto a debater e a
responder por suas decisões — e também por suas omissões. A falta de deliberação não é
apenas ausência de ação: é ato político com consequências jurídicas e institucionais.
As repercussões são graves. O Executivo perde previsibilidade, pois medidas editadas sob
urgência tornam-se reféns da inércia parlamentar. E a sociedade perde segurança jurídica,
já que atos que produzem efeitos concretos podem desaparecer sem discussão e sem
responsabilização.
Essa postura fere o ideal republicano e o princípio da continuidade do Estado, que exigem
transparência e compromisso com a decisão pública.
O preço da omissão
A Constituição não conferiu ao Congresso o direito de silenciar, mas o dever de deliberar.
Quando o Legislativo opta por não legislar, rompe o pacto republicano e mina a separação
dos Poderes.
O Parlamento não pode ser reduzido a mero palco de retórica, mas deve ser afirmar como
o espaço onde a vontade popular se transforma em norma jurídica, posto que, na
democracia, deve o legislativo ser o espaço do dissenso civilizado, da busca de consensos
possíveis e da construção de soluções compartilhadas. Recusar-se a apreciar uma Medida
Provisória é abdicar da função essencial que justifica sua existência.
Cumprir o dever de legislar exige coragem institucional — coragem para decidir, enfrentar
o debate e assumir as consequências. A democracia não se sustenta na conveniência
político-eleitoral, mas na responsabilidade republicana.
E quando o Legislativo decide não decidir, o preço da omissão se torna alto: enfraquece a
confiança pública, corrói a legitimidade institucional, dilui a própria ideia de representação
política — e faz do colapso do Estado de Direito não mais uma hipótese distante, mas uma
ameaça concreta e palpável.
Por Felipe Sarinho (Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal) e Professor
de Teoria do Estado e Direito Constitucional da UNICAP e da UPE)