Consolidada? Tomara!
Ao descrever e tentar dar significado a um acontecimento, não é incomum que o narrador sublinhe a complexidade do que se propõe analisar
Ao descrever e tentar dar significado a um acontecimento, não é incomum que o
narrador sublinhe a complexidade do que se propõe analisar, portanto da insuficiência
dos fatores ou motivações intervenientes enumerados, acrescentando algo generalizante
com o propósito de enfeixar a sua explicação: "Seja como for, naquelas circunstâncias...", "Tudo indicaria que".
Quando o acontecimento vier a dar lugar a algo expressivo e mesmo duradouro, como por exemplo, o Estado Novo ou movimento militar de abril de 1964, uma miríade de informações, de ações ou motivações desencontradas, mas que constavam do universo
decisório, é soterrado pelo que emerge como fato consolidado. E, no entanto, neste
emaranhado de coisas - por vezes ressuscitadas pelo exame da imprensa, arquivos,
diários e correspondências - encontram-se razões para ação ou omissão de muitos que à
época ocupavam posições influentes no rumo das coisas e que as ignoraram ou
descartaram como elementos relevantes para suas escolhas.
Em suas Memórias, "A Alma do Tempo", Afonso Arinos enumera uma fieira de
fatos políticos que haveriam desfavorecido o livre exercício da política de sua geração:
o "presidencialismo ditatorial" das presidências da Primeira República, o Estado Novo, o retorno de Vargas ao poder e seu suicídio em 24 de agosto de 1954, a reação da oposição à posse de Juscelino e o “contragolpe defensivo” do 11 de novembro de 1955, liderado pelo General Lott. Enfim, a agenda queixosa da União Democrática Nacional
(UDN),
seu partido.
A certa altura de A Alma do Tempo, Afonso Arinos, escrevendo em 1960, nos diz:
“Estamos as vesperas de um novo três de outubro. A situação nacional é, porém,
diferente, complexa, promissora. Tenho por certa a vitoria de Carlos Lacerda (para
governador do Estado da Guanabara), acredito também, firmemente, que Jânio vai
ganhar (a Presidência da República).
De qualquer forma, parece que a democracia se
consolidou, no Brasil, nestes trinta anos, que sao cenário da minha formação [...] Creio
que meu filho Afonso, candidato, poderá, caso se eleja , prosseguir a tradição do nosso
nome. Parece que as condiçoes em que inicia a sua
vida politica sao bem mais
favoráveis do que aquelas , tumultuosas e ditatoriais, em que levei grande parte da minha”.
Em nota de rodapé, de março de 1978, Arinos constata melancolicamente na segunda
edição de suas Memórias: "Relendo este trecho, constato tristemente como sao
falíveis as previsões humanas. Nunca a democracia sofreu maior colapso no Brasil do
que apos 1964. E os maiores responsaveis pela longa era de escuridao foram,
precisamente, Jânio Quadros e Carlos Lacerda”.
Sessenta e cinco anos depois da eleição de Jânio (presidente) e de Carlos Lacerda (governador), a conclusão aliviada do então senador quanto ao futuro
das liberdades no Brasil não parece algo dito pelos mais otimistas nas recentes
discussões sobre a iminência de um golpe militar? Durou pouco seu alívio e, agora,
quase chegávamos ao mesmo desacerto.
E em seguida?
Cala-te boca!
José Almino de Alencar - Sociólogo, escritor e ex-presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa