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O corpo da mulher não é espaço público

O recente caso de importunação sexual envolvendo uma modelo na praia de Boa Viagem, em Recife, reacendeu um debate necessário e urgente

Por Tatiana de Carvalho Costa e Silva

"Violentada, triste, suja", desabafa mulher após homem passar a mão sua bunda em Boa Viagem

O recente caso de importunação sexual envolvendo uma modelo na praia de Boa Viagem, em Recife, reacendeu um debate necessário e urgente: o corpo da mulher continua sendo alvo de investidas abusivas em espaços públicos, mesmo diante de avanços legais e de um discurso social cada vez mais atento às questões de gênero. O episódio não é exceção, mas sintoma de um problema estrutural que insiste em se repetir, seja em praias, transportes coletivos, festas ou locais de trabalho.


É preciso afirmar, sem rodeios: a importunação sexual não é um gesto de descuido, não é mal-entendido, tampouco deve ser tratada como brincadeira de mau gosto. É crime, previsto na lei, e representa uma forma de violência que compromete a dignidade e a liberdade das mulheres. Quando um homem acredita ter o direito de tocar, cercar ou dirigir palavras de conotação sexual a uma mulher sem consentimento, ele não apenas desrespeita um indivíduo, mas reforça a lógica machista de que o corpo feminino é espaço de livre acesso.


A naturalização desse comportamento é uma das faces mais perversas da cultura patriarcal. Quantas vezes ainda ouviremos que “não foi nada demais” ou que “ela interpretou errado”? O problema não está na percepção da vítima, mas na ação do agressor. O questionamento que deveria ser feito é: por que tantos homens ainda acreditam que podem agir dessa forma sem consequências? A resposta, infelizmente, está na impunidade histórica, na conivência social e na falta de uma educação voltada para a igualdade de gênero.


O caso da praia de Boa Viagem também expõe outra ferida: a sensação de vulnerabilidade que muitas mulheres carregam ao ocupar espaços públicos. Ir à praia deveria ser sinônimo de lazer, descanso e liberdade. No entanto, episódios como esse transformam um ambiente de convivência em um território de risco. Ao invés de se preocupar apenas com o sol e o mar, mulheres precisam calcular onde sentar, como se vestir, de que forma andar, para reduzir a possibilidade de assédio. Isso não é liberdade; é uma prisão a céu aberto.


É alentador observar, contudo, que cada vez mais mulheres têm denunciado. A coragem da modelo ao expor a situação mostra que o silêncio não é mais a única resposta possível. Denunciar é, por si só, um ato de resistência e de pedagogia social: ensina ao agressor e à comunidade que aquilo não será tolerado. Ao mesmo tempo, denunciarem não deve ser um fardo exclusivo das vítimas. É responsabilidade da sociedade como um todo familiares, amigos, instituições e autoridades apoiar e dar credibilidade a essas vozes.


A legislação brasileira avançou ao tipificar a importunação sexual como crime, prevendo punições claras. No entanto, a lei, por si só, não basta. É necessário que os órgãos de segurança pública atuem de forma ágil, que a justiça seja efetiva e que a sociedade deixe de relativizar condutas abusivas. De nada adianta termos uma norma escrita se, na prática, a vítima continua sendo desestimulada a denunciar ou desacreditada quando tem coragem de fazê-lo.


Além disso, é urgente investir em campanhas educativas permanentes, capazes de desconstruir padrões machistas que naturalizam a objetificação do corpo da mulher. A transformação precisa começar cedo, ainda na infância, quando meninos e meninas aprendem a conviver e a respeitar limites. A escola tem papel fundamental, assim como a mídia, as famílias e as políticas públicas. Falar sobre consentimento não deveria ser tabu, mas requisito para formar cidadãos conscientes.


A resistência de setores conservadores em tratar dessas questões de gênero revela o medo de perder privilégios. Muitos homens, ainda hoje, enxergam o respeito como perda de liberdade. Mas a verdade é simples: liberdade não é licença para invadir, constranger ou violar o outro. A verdadeira liberdade só existe quando todos podem viver sem medo de serem atacados, assediados ou reduzidos a objetos.
O caso em Boa Viagem, Recife não deve ser esquecido ou tratado como mais um na estatística. Ele precisa servir de alerta e de combustível para uma reflexão coletiva: que cidade queremos construir? Uma cidade em que mulheres se sintam seguras para ocupar as praias, ruas e praças, ou que a liberdade delas continue limitada pelo medo do assédio?


A indignação não pode parar na manchete; precisa se transformar em ação, em mudança cultural e em práticas institucionais consistentes. O respeito, como já diz a lei, não é opção é obrigação. Cabe a nós, como sociedade, decidir se queremos continuar reproduzindo a velha normalização da violência ou se estamos prontos para dar um passo real em direção à equidade. É hora de aprender, de uma vez por todas, que o corpo da mulher não é espaço público. É território de dignidade, autonomia e respeito.

 

Tatiana de Carvalho Costa e Silva. Gestora escolar e Acadêmica de Direito – IESO.
Mariana Carvalho Advíncula. Acadêmica de Direito – UNINASSAU.
Sérgio Ricardo Araújo Rodrigues. Advogado e Professor Universitário.