° / °
Cadernos Blogs Colunas Rádios Serviços Portais

Fé, escárnio e a contradição de um "homem de Deus"

Enquanto muitos de nós seguem lutando para combater a discriminação entre religiões e promover o respeito entre diferentes expressões de fé, há quem prefira usar a posição de liderança espiritual para zombar, julgar e espalhar preconceito

Por João Carvalho

Bíblia Sagrada

Enquanto muitos de nós seguem lutando para combater a discriminação entre religiões e promover o respeito entre diferentes expressões de fé, há quem prefira usar a posição de liderança espiritual para zombar, julgar e espalhar preconceito. Foi o que fez, sem pudor, o sacerdote Danilo César, da Paróquia de Areial, na Paraíba (Diocese de Campina Grande), ao usar o falecimento da cantora Preta Gil como pretexto para debochar das religiões de matriz africana.


Durante um sermão, em plena missa, o padre ironizou publicamente os orixás. Perguntou, com acinte: “Por que os orixás não ressuscitaram Preta Gil?”. E seguiu dizendo estar torcendo para que “o diabo leve” aqueles que procuram “essas coisas ocultas”. Com isso, expôs não apenas desprezo por uma religião diferente da sua, mas também um preocupante grau de ignorância sobre o que de fato ensinam e professam essas tradições. A reação foi imediata: a família de Preta Gil anunciou que irá acionar o padre na Justiça, apontando a fala como discriminatória e ofensiva à memória da cantora e às religiões afro-brasileiras.


Alguém precisa explicar a ele — com calma e talvez com didatismo — que, na religião do candomblé, não se acredita em ressurreição. Tampouco se crê no diabo cristão. Logo, seu raciocínio parte de uma falsa equivalência: compara crenças diferentes com base em categorias exclusivas da sua própria doutrina. Não é apenas uma falácia, é também desonestidade intelectual e espiritual.


E mais: segundo a lógica do próprio sacerdote, se os orixás são falsos porque não evitaram a morte, o mesmo poderia ser dito dos santos católicos, dos padres e dos papas. Quantos foram ressuscitados? Quantos, mesmo cercados de rezas e procissões, escaparam da morte? Nem João Paulo II, figura de santidade para milhões, evitou o fim. A morte não desautoriza a fé de ninguém. Ela é parte da existência, e não o critério de validade de um credo.


Não sei sobre vida eterna ou ressurreição, mas sei que Jesus mandou amar — inclusive quem pensa diferente. Sei também que, de acordo com Mateus 25, no dia do Juízo Final, não será a fé que grita mais alto, nem quem aponta mais dedos, que encontrará salvação. Cristo afirma que herdará o Reino quem deu de comer ao faminto, acolheu o estrangeiro, vestiu o nu. Não quem zombou da dor alheia ou menosprezou a crença do outro.


A fala do padre Danilo não é apenas desrespeitosa. É cruel. E revela uma espiritualidade rasa, que se alimenta do escárnio e da superioridade moral. Um verdadeiro homem de Deus não precisa agredir para defender sua fé. Muito menos usar o púlpito para atacar quem está em luto ou fazer piada com os mortos.


Vivemos tempos de crescente intolerância religiosa, e episódios como esse apenas reforçam estigmas que matam. Sim, matam. Há terreiros incendiados, líderes de religiões afro agredidos, crianças impedidas de usar suas roupas e contas. Cada palavra de deboche, vinda de quem tem influência, acende mais uma faísca nesse fogo do preconceito.


A espiritualidade, quando genuína, é silenciosa, respeitosa e humilde. O que se ouviu naquela missa foi o contrário disso. Foi a fé transformada em palco de vaidade e violência simbólica. E, ironicamente, foi a negação do que o próprio Cristo pregou: a compaixão, a escuta, o acolhimento.


Que o padre reflita. Que sua diocese se manifeste. Que os fiéis também saibam reconhecer que nem toda fala vinda de um altar é sagrada. Às vezes, é apenas o eco de uma alma que ainda não entendeu que religião sem respeito é apenas mais uma forma de opressão — ou de idolatria do próprio ego.