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Mona Lisa pernambucana

Jacques Ribemboim
Cadeira nº 7 da Academia Pernambucana de Letras

Por Diario de Pernambuco

Gilberto Freyre em Apipucos.

Em livro de 1922, intitulado Vida Social no Brasil nos Meados do Século 19, Gilberto Freyre exibe a figura de um quadro: retrato de Anunciada Camila Alves da Silva, nascida em Goiana a 25 de março de 1815, falecida no sobrado grande, no Manguinho, a 12 de novembro de 1888 (p. 93, 3ª ed., Massangana, 1985). Era irmã do Conselheiro Anselmo Franciso Peretti, presidente da província de Pernambuco, cargo que hoje equivale ao de governador do estado.

A obra é atribuída a Alessandro Cicarelli, pintor napolitano que passava pelo Recife a caminho do Rio de Janeiro, onde viria a se destacar como renomado artista, sendo contratado por Pedro II para ensinar belas-artes à esposa, imperatriz Teresa Cristina.

E se, na tela, Anunciada Camila parece posar como uma Gioconda, olhar enigmático, colo livre, braço apoiado; na vida real mais se assemelharia à clássica Penélope, de afamada beleza, sempre cercada de pretendentes, adiando um possível casamento. Isso porque enviuvara cedo, ainda jovem, e costumava reunir a elite intelectual do Recife para saraus musicais e poéticos em sua residência. Naqueles anos do cólera, quando a longevidade média dos pernambucanos não passava de cinquenta anos, as festas de salão – les salons – eram o único fomento para a criação poética e literária.

Entre um e outro desses saraus, em que os cavalheiros a disputavam - sem as lanças medievais de antigamente, mas armados de poemas e partituras – um lhe atrairia a atenção. O médico Antônio Peregrino Maciel Monteiro, Segundo Barão de Itamaracá, que lhe dedicou magistral soneto, considerado por Manuel Bandeira como pérola do romantismo brasileiro: (...) Formosa, qual se a própria mão divina / Lhe alinhara o contorno e a forma rara (...) Quem pode ver-te sem querer amar-te? / Quem pode amar-te sem morrer de amores!

Sua casa no Manguinho permanece de pé até hoje, um palacete na Praça do Entroncamento, em terreno contíguo à sede do Tribunal Regional Eleitoral, já próximo à Avenida Agamenon Magalhães. De arquitetura neoclássica, à la Vauthier (que andava pelo Recife naqueles tempos), foi recentemente restaurada e denominada Anexo Desembargador Otílio Neiva, justa homenagem ao falecido jurista piauiense.

O quadro de 1,2m de altura por 1,0m de largura, com moldura dourada, foi restaurado por Nilse Fontes nos anos 2010 e cedido em comodato ao Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano, devendo voltar a ser exposto tão logo concluídas as obras de manutenção do museu. Trata-se de uma obra de raro valor afetivo, haja vista o protagonismo da retratada na emancipação das mulheres em uma sociedade fortemente patriarcal.

Claro, não vamos comparar aqui as qualidades técnicas de um Leonardo da Vinci e seu famoso quadro ao nosso discreto e não menos requintado, Cicarelli. O que estamos afirmando é que, sim, temos a nossa Mona Lisa tropical, cuja essência extrapola os limites do tempo e do espaço.

Uma simples busca na Internet permite visualizar distinções. As duas modelos são levemente estrábicas, mas enquanto a Mona Lisa possui olhos oblíquos e penetrantes, os de Anunciada Camila são redondos e viçosos, quase inocentes. Em ambas, nariz, bocas e bochechas se parecem, mas o ombro esquerdo de uma é levemente caído, enquanto na outra, é o ombro direito que está rebaixado. Os cabelos... – ah! esses em nada se assemelham – os da Mona Lisa são escorridos e frugais. Anunciada Camila, ao contrário, exibe cabeleira de cachos exuberantes, com um coque alto, laçarote, tiara de ouro e pedras. Renascença e Barroco. São belezas femininas que resistem aos séculos.

Encantada com o retrato de Anunciada Camila, a premiada escritora Luzilá Gonçalves Ferreira publicou em 2012, o livro Iluminata, um romance inspirado na vida da goianense, apenas trocando-se os nomes próprios e valendo-se de umas poucas licenças literárias. Por exemplo, na história de Luzilá, a personagem Iluminata falece em Paris e é enterrada no Père Lachaise. Na vida real, contudo, nossa musa faleceu em casa, no Recife, e repousa no Cemitério do Santo Amaro.