Vale do Lítio: exploração de metais críticos impacta comunidades em MG
Moradores reclamam de poeira e barulho após expansão da exploração
No coração do Vale do Jequitinhonha, no nordeste de Minas Gerais, metros abaixo do solo, uma transformação passa quase despercebida por quem atravessa a BR367, entre os municípios de Araçuaí e Itinga. É lá que está instalada a planta de lavra de lítio explorada por empresas estrangeiras. No meio do caminho, a comunidade rural Piauí Poço Dantas, tem outra percepção: a da chegada de muitos problemas, entre eles a poeira, o barulho e os rejeitos gerados a partir da exploração.
“Excesso de poeira, barulho constante - que não para nem dia nem noite, 24 horas por dia, sete dias da semana. A a destruição da mata, essas pilhas de rejeito que nos incomodam bastante. Então, de uns anos para cá, a gente vem sofrendo bastante com isso. O nosso córrego está sendo assoreado devido a essas pilhas de rejeito. Então, nossos problemas aqui são gigantes”, descreve Ana Cláudia Gomes de Souza, pedagoga e moradora da comunidade rural, que pertence ao município de Itinga.
O lítio é um metal alcalino e raro, com uso em vários setores da economia, como metalurgia, produção de cerâmicas e vidros. Ganhou relevância com o início do processo de transição energética e o uso na produção de baterias de íon-lítio e na geração de energia eólica.
Moradora da região desde que nasceu, Ana Cláudia lembra da presença de mineradoras atuando próximas à comunidade desde sempre. Mas os efeitos começaram a ter mais intensidade há poucos anos. “Foi depois de 2023 pra cá, com essa nova mineração”, lembra.
A data coincide com o início das exportações brasileiras do mineral e a intensificação dos projetos de pesquisa e extração do lítio na região, por empresas multinacionais. Antes disso, a lavragem era realizada apenas pela Companhia Brasileira de Lítio (CBL), que atuava no Vale do Jequitinhonha desde a década de 1990.
Mineral crítico
Por sua aplicação, o lítio é considerado um mineral crítico, classificação atribuída a recursos essenciais para setores estratégicos, como tecnologia, defesa e transição energética e cuja oferta está sujeita a riscos de escassez - seja por sua concentração geográfica, dificuldade de acesso ou instabilidade geopolítica. Além do lítio, estão na lista cobalto, níquel e as chamadas terras raras.
“O lítio é um metal leve, tem um alto potencial eletroquímico e uma boa relação entre peso e capacidade energética”, detalha publicação do Ministério de Minas e Energia.
Essas características somadas aos estudos do Serviço Geológico do Brasil (SGB) - que desde 2012 já apontavam um alto potencial de reserva na região - levaram a entrada de empresas multinacionais ao então denominado de Distrito Pegmatítico de Araçuaí. Uma delas foi a canadense Sigma Lithium, que se instalou no município de Itinga, com o projeto de instalação da Mina Grota do Cirilo-Xuxa.
Diferentemente da concorrente brasileira CBL, que opera a Mina da Cachoeira em uma planta subterrânea, a multinacional aprovou um projeto a céu aberto que opera a poucos metros da comunidade rural Piauí Poço Dantas. Junto com a entrada da holandesa AMG Critical Materials N.V, no município de Nazareno, a atuação das empresas resultou em um aumento na produção nacional de lítio de 83,6% em 2023, segundo o Sumário Mineral 2024, da Agência Nacional de Mineração (ANM).
A produção naquele ano gerou um aumento de 88,3% na arrecadação da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), o chamado royalty da mineração - R$55 milhões, no total. Mas, para parte da população, esses recursos não geraram benefício aos municípios.
Impactos
Uakyrê Pankararu-Pataxó vive na Terra Indígena Cinta Vermelha de Jundiba, município de Araçuaí, que fica a cerca de 10 quilômetros distante da mina operada pela Sigma. Para ela, apesar de pequenas melhorias nas unidades de saúde que atendem a região, o impacto sentido por todos foi maior e o próprio serviço público está sobrecarregado.
“Na região tem muito problemas respiratórios causados pela poeira, muita gente não consegue dormir porque as máquinas da Sigma fazem muito barulho. E prejudicam as mulheres, a gente vê muito assédio acontecendo por parte de trabalhadores de fora que vão para lá”, diz.
Além da consequência ambiental sentida no assoreamento dos rios por rejeitos que são levados pelo vento até os leitos das águas, Uakyrê destaca que o impacto cultural também é bastante presente.
“Essas empresas colocam umas pessoas contra as outras na comunidade, fazem as pessoas desacreditarem que existe um povo ali, que existe uma identidade. Porque, muita gente diz que não tem indígena aqui e que estão atrapalhando o desenvolvimento, sendo que Vale do Jequitinhonha é um nome indígena. Araçuaí é um nome indígena, Itinga é um nome indígena. Então eles tentam invisibilizar nossa presença para poder minerar”, critica.
A reportagem da Agência Brasil entrou em contato com a empresa Sigma Lithium em busca de mais informações sobre as ações de mitigação dos impactos sociais e ambientais na região do Vale do Jequitinhonha, mas até a publicação da matéria não houve resposta. O espaço segue aberto para o posicionamento da empresa.
Vale do Lítio
Em 2023, o governo de Minas Gerais lançou o programa Vale do Lítio, com o objetivo de atrair investidores e impulsionar a cadeia produtiva do mineral estratégico. De acordo com a Secretaria de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais, o projeto já atraiu R$ 6,3 bilhões em investimentos para o setor, com estimativa de criação de 4.897 empregos diretos.
“Apenas nos municípios prioritários do Vale do Lítio, foram abertas 6.788 novas empresas e gerado o saldo 3.975 de empregos desde 2023”, informou por meio de nota.
De acordo com o órgão estadual, a arrecadação da CFEM alcançou de R$ 38,5 milhões, graças a esse programa de incentivo. O governo destaca ainda o crescimento na arrecadação de outros tributos como o Imposto Sobre Serviços (ISS), com aumento de 84,2%, e o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que aumentou 36,9% desde 2023. Questionado pela reportagem, o governo mineiro não respondeu de que forma esses recursos foram investidos na melhoria da qualidade de vida da população.
“Antes da operação da Sigma Lithium, Araçuaí e Itinga arrecadavam juntos cerca de R$ 7,2 milhões em CFEM, considerando todos os minerais. Em 2023, esse valor saltou para R$ 21,6 milhões, um crescimento de 200%”, destacou o governo.
A secretaria estadual informou ainda que o estado tem atuado de forma integrada aos municípios na ampliação de a infraestrutura urbana e serviços públicos para atender à demanda crescente por serviços públicos, como a rede de saúde.
“Lembramos ainda que a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese) ampliou a oferta de cursos de formação inicial e continuada para os moradores da região, por meio do programa Minas Forma. A iniciativa, realizada em parceria com o Senai-MG, visa preparar a mão de obra local para as oportunidades geradas pelo avanço da indústria do lítio”, reforçou.
MPF
Adotada pelo Brasil desde 2003, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) define a necessidade de consulta livre, prévia e informada aos povos e comunidades tradicionais, antes da aprovação de projetos que possam atuar sobre seus territórios. A norma estabelece ainda a obrigação dos governos em reconhecer e proteger os modos de vida, valores, práticas sociais, culturais, religiosas e espirituais.
Mas tanto integrantes dos povos indígenas da região, quanto da comunidade rural, afirmam falta de espaço para diálogo com as empresas. O Ministério Público Federal em Minas Gerais (MPF-MG) recomendou, no último dia 3 de setembro, a revisão e a anulação das autorizações de pesquisa e lavra em Araçuaí e municípios limítrofes.
Além da medida, a manifestação do MPF, assinada pelo procurador da República Helder Magno da Silva, também recomenda que sejam realizadas as consultas prévias às comunidades. O documento cita dezenas de comunidades próximas à operação da Sigma, entre elas a da Aldeia Cinta Vermelha Jundiba, do Povo Indígena Pankararu-Pataxó.
Procurada pela reportagem da Agência Brasil, a ANM informou, por meio de nota, que recebeu a recomendação do MPF e os termos apresentados estão em análise pelo órgão regulador.
“A manifestação da Agência ocorrerá dentro dos canais legais e administrativos competentes, em conformidade com a legislação”, informou.
Conselho Nacional
Para tentar equilibrar a relação entre os impactos da exploração e os benefícios que os minerais podem trazer à economia brasileira, o Ministério de Minas e Energia reestruturou o Conselho Nacional de Política Mineral (CNPM). O objetivo é construir uma estratégia nacional de transição energética alinhada aos desafios das mudanças climáticas.
“A mineração brasileira não pode ser apenas extrativa. É nosso dever transformá-la em vetor de inovação, inclusão e desenvolvimento sustentável. Esse é o compromisso que o governo federal está assumindo com Minas Gerais e com o Brasil”, declarou o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, durante o lançamento da política pública de planejamento do ciclo mineral nos municípios, em Nova Lima (MG), no último dia 22.
Para ele, “quanto mais pujante a mineração legal, sustentável e segura, mais cresce a arrecadação de CFEM e de tributos”. “Uma mineração bem planejada possibilita investimentos locais em infraestrutura, saúde, educação e tecnologia”, disse.
Impactos x benefícios
Um estudo produzido pela organização Oxfam Brasil analisou as oportunidades geradas pela transição energética em relação ao modelo global de consumo, que fez crescer a demanda por mais geração de energia.
Entre os achados, os pesquisadores apontam que, apensar de os países do Sul Global deterem 70% das reservas de minerais essenciais para a transição energética, a maior parte dos investimentos em energia renovável está concentrada no Norte Global – que recebe 46% dos recursos para essa finalidade.
De acordo com o relatório, essa dinâmica faz com que países menos desenvolvidos recebam os impactos da mineração, enquanto os países mais desenvolvidos partilham os benefícios, inclusive uma oferta energética excedente.
“Os países do Sul Global, que têm abundância desses minérios, já enfrentam dívidas e o descrédito das instituições, da estrutura de finanças global que oferece a possibilidade de acessar recursos a juros muito altos, elevando ainda mais o valor dessa dívida. Então, na verdade, financiar essa transição energética, embora haja riqueza de minerais nesses países, não é possível porque não existe recurso para pagar essa estrutura”, ressalta a diretora-executiva da Oxfam Brasil, Viviana Santiago.