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Liberdade e jornalismo estão nas raízes do Diario de Pernambuco

Criado como um folheto de anúncios, o DP publicou relatos do cotidiano do Recife desde a sua primeira edição, que foi às ruas há 200 anos

Por Mareu Araújo e Nicolle Gomes

Rotativas do Diario

Em 200 anos de circulação, o Diario de Pernambuco estampou mais de 63 mil manchetes, viu dois imperadores, cinco regentes e 37 presidentes, noticiou quatro grandes pandemias e as duas Guerras Mundiais. Jornal mais antigo em circulação da América Latina, o Diario possui em sua bagagem histórica ter sido o pioneiro na defesa da liberdade de imprensa e um grande ajudante no entendimento do que conhecemos hoje como região Nordeste brasileira.

Fundado em 1825 pelo tipógrafo Antonino José de Miranda Falcão, no Recife, o Diario de Pernambuco era, inicialmente, um 'diário de anúncios' de quatro páginas. Em sua introdução, o fundador anunciou: “Faltando nesta cidade assaz populosa um diário de anúncios, por meio do qual se facilitasse as transações, e se comunicassem ao público notícias, que a cada um em particular podem interessar, o administrador da Tipografia de Miranda e Companhia se propôs a publicar todos os dias da semana exceto aos domingos somente o presente Diario”.

O historiador e jornalista Tércio Amaral acredita que o Diario se apresentava, inicialmente, como uma folha de anúncios para garantir sustentação financeira. Apesar da motivação comercial, o caráter informativo e a cobertura do cotidiano já estavam presentes desde o primeiro dia. “Na primeira edição mesmo há um caso sobre um furto em Beberibe”, lembra. Nesta mesma edição, o 11º parágrafo reportava o roubo de dois animais de cor castanha e informava que quem os encontrasse seria recompensado com 16 mil réis.

Atualmente, o estilo de texto informativo usado para a época pode causar estranheza ao leitor, porém, o professor afirma que a qualidade jornalística do Diario era similar a outros grandes centros. “Se você avaliar uma edição do Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, dessa época existe similaridade na linguagem. Talvez você não vai ter esse tipo de produção jornalística na Paraíba ou no Rio Grande do Norte, por exemplo. Então, eu acho que o Diario tem como legado posicionar Pernambuco jornalisticamente no Brasil desde o século19”, afirma Tércio.

LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Ainda no século 19, o Diario enfrentou seu primeiro processo judicial por liberdade de expressão, em 1826, menos de um ano de sua fundação. Na ocasião, o jornal reproduziu uma notícia da Gazeta da Paraíba, publicada sob o pseudônimo "Um Constante Leitor", que denunciava o ouvidor de Olinda, Luiz Ângelo Vitório do Nascimento Crespo. Em três das quatro páginas do jornal, o Diario expôs as críticas do denunciante sobre uma decisão do magistrado sobre a apropriação de escravos.

Foi só um ano depois que o ouvidor denunciou o Diario de Pernambuco. “Como se tratava de uma reprodução, o Diario pegou um trecho da matéria original da Gazeta Paraibana e a usou como estratégia: a reimprimiu. Em sua defesa, Antonino disse que ele não seria mais réu do que quem fez a publicação original. E acabou vitorioso”, conta o historiador.

Segundo Tércio Amaral, nesse período, o Diario havia “embarcado em uma seara perigosa, ao defender, em diversos artigos, o direito à liberdade de imprensa”. Um deles foi publicado em 1º de fevereiro de 1827 e tem como título “Liberdade da Imprensa – meios de segurar suas vantagens e de prevenir seus abusos”. No texto, o jornal critica a constituição de 1824, define quais seriam os abusos e defende os direitos de expressar e liberdade de imprensa.

“Todas as vezes que se não predeterminam todos estes casos com exatidão se seguem grandes abusos; o mesmo é quando se predeterminam sem acurada diligência. Pois que, se são menos daqueles que devem ser, ficam os direitos individuais sem proteção, e o governo a peito descoberto contra os assaltos de qualquer descontente, ou qualquer faccioso”, diz o texto de 1827.

Para o jornalista José Antônio da Costa Pôrto, em seu depoimento para o livro História da Imprensa de Pernambuco, de Luiz do Nascimento, o Diario foi, desde a época de Antonino, um jornal combativo que, ao longo de sua história, “enfrentou as iras dos prepotentes e dos liberticidas”. Costa Pôrto ainda afirma que o DP é, desde sempre, um “jornal identificado com as mais sentidas aspirações dos pernambucanos e nordestinos, sempre se esquivou, por isso, a ser um jornal sem opinião, uma imprensa neutral”.

O NORDESTE NASCE
Antes mesmo do nascimento do Diario, existia o conceito de dividir o Brasil em Norte e Sul, e foi a partir da década de 1920 que começou-se a ter uma definição de Nordeste. “Porque você tem o conceito geográfico de região Nordeste, mas esse conceito começa a ser trabalhado culturalmente graças ao Diario. O DP foi um dos responsáveis por construir o conceito de região Nordeste no Brasil”, afirma o pesquisador.

Essa construção aconteceu a partir da publicação do “Livro do Nordeste”, organizado por Gilberto Freyre para a celebração do centenário do Diario, há 100 anos. No editorial, Freyre afirma que esse é um “inquérito da vida nordestina; a vida de cinco de seus estados, cujos destinos se confundem num só e cujas raízes se entrelaçam nos últimos cem anos”.

Nessa época, de acordo com o livro “A Invenção do Nordeste”, do historiador Durval Muniz, Recife era o centro jornalístico de uma área que ia de Alagoas até o Maranhão. Teria sido a partir da pesquisa de anúncios publicados no Diario e do descontentamento pela forma com que o “Sul” do país descrevia o Nordeste, que Freyre definiu o que seria a região.

“Mas, isso se deve também a uma característica de um jornal que vem funcionando desde o século 19, com gente importante escrevendo. Então, o Diario se consolida como grande veículo do Nordeste”, diz Tércio. O livro, de 264 páginas, possui textos de Freyre, Edwiges Pereira, Mário Melo, Aníbal Fernandes e outros jornalistas e escritores pernambucanos que falam sobre a mulher, o açúcar, questões históricas da região e outros temas. Amaral afirma que o “Livro do Nordeste” foi um dos “balizadores do que seria o Nordeste”.

Em trecho de seu livro, Durval Muniz pontua que não são fatores naturais que definem e dão identidade a uma região, mas, sim, fatos históricos e de ordem cultural. No caso do Nordeste, “é a fundação da Faculdade de Direito, é a atuação do Diario de Pernambuco, e é a invasão holandesa e a Insurreição Pernambucana”, diz trecho do livro “A Invenção do Nordeste”.

Na edição do jornal impresso de 7 de novembro de 1925, após contar a história do jornal, o texto é encerrado: "Acentuam-se, nesta fase, as linhas do tradicional programa do Diario, inspirado nas urgências e nas aspirações gerais do Nordeste brasileiro. Identificado assim com as penas e as alegrias e os esforços e as glórias de quatro gerações, dir-se-ia, a voz do Diario de Pernambuco, a própria voz do passado nordestino. E quando o jornal atinge a semelhantes responsabilidades de representação, perde todo direito de subordinar-se a pontos de vista de momento — de pessoas, de grupo, de classe, ou de partido — ou às seduções da popularidade; e adquire o dever de pôr a serviço dos grandes interesses de sempre, acima dos de momento, e mesmo contra êles, a sua voz secular".

Nesta edição, o jornal circulou com 60 páginas, o recorde do período, e estampava em sua capa a impressora usada na época e ao lado a prensa de onde saiu o primeiro número. Acima do desenho, as palavras: "Aos que se foram — Reconhecimento — Saudades", lendo-se em baixo: "... e sejam os vindouros dignos deles".

“Pernambuco é privilegiado por ter o Diario em circulação por todos esses anos. Ganhamos um grande arquivo histórico, uma grande fonte de informação para entendermos os processos sociais das relações de poder no estado. Não se pode fazer isso sem ter o Diario de Pernambuco como uma fonte de pesquisa”, afirma o jornalista Evaldo Costa, que foi diretor do Arquivo Público de Pernambuco por sete anos e atuou como repórter do Diario no início dos anos 2000.

Leitor do Diario desde metade dos anos 1960, Evaldo compartilha que adorava abrir a folha e ler as charges. “Entre o final dos anos 1970 e o começo dos anos 1980, o Diario possuía uma grande cobertura de cidades. Eu me lembro que foi um tempo que tinha muita invasão e nasciam as comunidades e quem batizava essas comunidades eram repórteres do Diario”, lembra. Um exemplo, segundo Evaldo, foi a Comunidade Bola na Rede, localizada no bairro da Guabiraba, na zona norte do Recife, nomeada pelo repórter Amin Stepple - que confirmou a ele a informação.

O batismo das comunidades acontecia durante a cobertura de fatos da editoria de Vida Urbana, como permanece sendo chamada até hoje. “As lideranças das comunidades queriam que a reportagem do Diario de Pernambuco estivesse lá porque se a imprensa estivesse lá, a polícia teria que ir. Então, era uma das articulações fundamentais entre imprensa e comunidade”, afirma o jornalista.

Tais articulações não foram inéditas da década de 70 e 80. Na comemoração de 120 anos, em 1945, após o empastelamento e o assassinato de Demócrito de Souza Filho na sacada do jornal, o editorial do Diario de Pernambuco escreveu: “O velho Diario jamais foi uma folha amorfa, mas o que sempre pretendeu ser foi uma antena da coletividade”.

Ainda antes, quando celebrava 114 anos, o artigo principal, de responsabilidade da redação, afirmou que "não existe para este jornal o pronome pessoal na primeira pessoa. O "eu" aqui é sempre odioso. E com isso não nos orgulhamos, nem nos jactamos. É que o clima do jornal é mesmo este. Acima de cada um de nós está o dever de servir ao bem publico". A premissa segue firme como compromisso jornalístico.