Josué de Castro antecipou ideais contra a fome nas páginas do Diario
Em 1932, ainda na juventude, o intelectual pernambucano publicou opiniões e contos ficcionais no jornal
A transfiguração do retirante Zé Luiz em caranguejo. A morte do menino pescador João Paulo, durante uma brincadeira inconsequente, pela saraivada de tiros da Revolução de 1930. A fuga envergonhada da negra Idalina da Ilha do Leite. São personagens e alegorias urbanas da vida nos mangues e mocambos do Recife, que avançaram do Capibaribe para as páginas do Diario de Pernambuco de 1932, através de uma série de contos publicados pelo jovem médico Josué de Castro. Aos 23 anos de idade, ele antecipou seus ideais fundamentais contra a fome no jornal, antes mesmo da publicação do seminal Geografia da Fome, em 1946.
Obra mais célebre de Castro, o livro foi lançado em um momento histórico marcado pelo fim da Segunda Guerra Mundial, que colocou o tema da fome na agenda mundial. “No Brasil, tínhamos um momento de epidemia da fome, sobretudo no Semiárido. Geografia da Fome é uma obra-denúncia, a primeira vez em que essa fome se tornou visível no país”, afirma o professor de História da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) Hélder Remígio.
Em Geografia da Fome, o médico, escritor e geógrafo pernambucano pensa a fome como um problema social, que não está relacionado aos resultados dos fatos da natureza. Além disso, Castro passa a considerar a questão da subnutrição como um estado de alimentação desequilibrada e de má qualidade, mesmo em dietas com considerável valor calórico.
Para Remígio, o Diario serviu como veículo para as primeiras ideias de Castro, antes que ele se tornasse uma referência mundial no debate da fome. À época em que seus primeiros contos foram publicados pelo jornal, contudo, ele era bem diferente do renomado intelectual pernambucano, lido em todo o mundo como referência no tema da fome.
“Na década de 1930, Josué de Castro era um professor da Faculdade de Ciências Sociais do Recife, recém-formado em Medicina pela Universidade do Rio de Janeiro, que tinha voltado a Pernambuco para clinicar”, conta o pesquisador.
Nas edições antigas do jornal, é possível encontrar os anúncios do jovem médico, que divulgava seu consultório instalado no penúltimo pavimento do “arranha-céu” da Praça da Independência, no Bairro de Santo Antônio. O charmoso prédio amarelinho segue no local, com seus agora discretos seis andares voltados para a antiga sede do Diario.
“No Diario, ele publicou uma série de contos, nos quais trabalhava a difícil realidade social em forma de histórias que flertavam com a literatura. Ali, ele cria essa perspectiva do ciclo do caranguejo, ao falar sobre as comunidades que vivem nas margens do Rio Capibaribe, no interior dos mangues”, ressalta Remígio.
Castro também se expressava através de opiniões e entrevistas concedidas ao jornal, a exemplo da que consta na capa de 4 de janeiro de 1933. Na ocasião, o veículo realizava uma campanha pela inclusão de obras contra as secas na Constituição de 1934, que estava em discussão.
No período, ele já defendia uma mudança de olhar sobre o Nordeste, que considerava uma “zona privilegiada”, dotada de clima medianamente quente e umidade relativa do ar pouco elevada. Essa visão passa a delegar ao poder público a responsabilidade pelas consequências da seca e das desigualdades sociais.
“Antes de tudo, é preciso afirmar que todo dinheiro despendido pela nação num combate sistematicamente organizado contra as secas, não será simples obra de caridade, mas a expressão duma acertada política econômica”, afirmava o intelectual.
Documentário do Nordeste
Publicado no Diario em primeira mão, as primeiras noções teóricas de Castro sobre a fome reaparecem no livro “Documentário do Nordeste”, publicado em 1937. A obra reúne também os contos adiantados pelo jornal em 1932.
Em o “Ciclo do Caranguejo”, por exemplo, Castro narra a história da família Silva, composta por retirantes que deixaram a região do Cariri com destino aos mangues do Recife, na tentativa de fugir da fome. Diante do alto custo de vida na cidade grande, o “cabôco” Zé Luiz, chefe da família, decide cair no mangue, “onde não se paga casa, come-se caranguejo e anda-se ‘quasi’ nu”.
No texto, o autor olha para o mangue como o paraíso do caranguejo, que nele se alimenta da lama misturada a urina, excrementos e outros resíduos trazidos pela maré. “Por outro lado o povo daí vive de pegar caranguejo, chupar-lhe as patas, comer e lamber os seus cascos até que fiquem limpos como um copo. E com a sua carne feita de lama fazer a carne do seu corpo e a carne do corpo de seus filhos”, descreve.
Em um conto seguinte, Castro introduz João Paulo, o mais novo dos quatro filhos de Zé Luiz e Dona Joaquina. Há dois dias, o menino-pescador trazia tanto caranguejo que a família dividia com os vizinhos ou trocava uma roda do apurado por um punhado de açúcar.
Entediado de pegar caranguejo, João Paulo “fez uma bobagem enorme”. Pela primeira vez na vida, deixou o trabalho de lado para sair para brincar entre os “trovões”. Na verdade, os pipocos eram provocados por “homens armados de fuzis que tinham resolvido fazer uma revolução”.
Adeus, mangue
Nos 1960, quando já era um dos intelectuais brasileiros mais relevantes no mundo, Castro aceitou o convite do presidente Jango Goulart para o cargo de embaixador em Genebra, na Suíça. “Com o golpe militar de 1964, ele é desligado do cargo e vai para o exílio na França, onde retoma suas ideias sobre o ciclo do caranguejo”, acrescenta Hélder Remígio.
O adeus ao mangue seria definitivo. Impedido de voltar ao país pela ditadura, Castro passa a atuar como professor estrangeiro associado ao Centro Universitário de Vincennes (Universidade de Paris VIII Heliane Rosenthal). Ele exerceu o cargo até sua morte, em 24 de setembro de 1973.
“Em 1967, ele escreve o romance Homens e Caranguejos, que se volta novamente para os contos publicados no M. No livro, ele vai narrar a história de uma família que vem do Sertão, tomando João Cabral de Melo Neto e Graciliano Ramos como inspirações”, diz Remígio.
Para o pesquisador, os estudos do autor seguem atuais, servindo de referência inclusive para a criação da Aliança Global contra Fome e para a Fundação para Alimentação e Agricultura (FAO) das Organização das Nações Unidas (ONU), que conta com assessoria de José Graziano, criador do Programa Fome Zero lançado, em 2003, no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
“Josué de Castro já falava em combater o imperialismo, uma temática atual com o debate da soberania nacional. Ele também defendia a Reforma Agrária, que continua sendo uma das principais lutas para que o Brasil se torne desenvolvido e tenha a perspectiva de uma discussão ampla sobre segurança alimentar”, conclui Remígio.