200 anos forjando cultura: O papel do Diario de Pernambuco na identidade do estado
No vai-e-vem entre a redação do mais antigo jornal em circulação da América Latina e as ruas do Recife, Freyre forjou as lentes através das quais o povo pernambucano aprenderia a enxergar a si mesmo
O Diario de Pernambuco não foi apenas o palco, mas o co-autor da obra de Gilberto Freyre. Durante 69 anos, as páginas do jornal serviram de laboratório para o intelectual desenvolver sua revolucionária "sociologia do cotidiano". O método transformou detalhes aparentemente banais, como a disposição de móveis nas casas e relatos de assombrações, em ferramentas para decifrar a alma pernambucana.
No vai-e-vem entre a redação do mais antigo jornal em circulação da América Latina e as ruas do Recife, Freyre forjou as lentes através das quais o povo pernambucano aprenderia a enxergar a si mesmo. Até seus desenhos e caricaturas, publicados sob pseudônimos, complementavam esse projeto de criar uma geografia sentimental da cidade.
Mas muito antes de Freyre, o Diario já exercia esse papel de cronista da cultura Basta voltar ao início do século 20 , na esteira dos blocos de rua, entre o suor e o som das fanfarras, quando uma palavra que começou a ecoar era nova, soava estranha para alguns, e tentava descrever o fervor, a agitação do povo durante o carnaval: Frevo.
Durante décadas, acreditou-se que ela havia aparecido pela primeira vez na imprensa em 9 de fevereiro de 1907 — data que ainda é usada como referência para o surgimento oficial do ritmo. Mas a consulta a acervos digitalizados revelou que o registro mais antigo estava nas páginas do veículo de 11 de janeiro de 1906.
Através de registros como esse, o Diario não apenas noticiava fatos, mas ajudava a forjar a própria noção de uma cultura pernambucana. O jornal forneceu o fio condutor que entrelaçou manifestações populares aparentemente soltas para compor um imaginário único, criando o repertório que alimenta até hoje o senso de pertencimento e o famoso dito “Pernambuco é meu país”. Dessa forma, cada edição virou uma página nessa longa conversa entre a redação e as ruas.
O jornal acompanhou de perto a efervescência cultural do estado, e nesse caldeirão o frevo fervilhou. À medida que a prática se enraizava nas ruas, o Diario a legitimava em suas páginas. As descrições dos blocos carnavalescos começaram a adotar o termo, transformando um simples verbete no nome de um dos maiores símbolos nacionais da cultura popular.
A atuação do Diario está intrinsecamente ligada a um projeto de modernidade. Desde sua fundação, em 1825, o jornal se inseriu nos grandes debates nacionais, do republicanismo à divulgação das inovações tecnológicas, como a chegada do trem. Ao noticiar o novo, o jornal ajudava a pavimentar o caminho para o futuro. “A imprensa não é uma máquina. É feita de pessoas que refletem as sensibilidades do seu tempo”, reflete a historiadora Lídia Rafaela. “Essas relações e circulações culturais fizeram com que o veículo se envolvesse em diversos aspectos de transformações importantes ao longo da história”, completa.
Em 11 de dezembro de 1975, o Diario dedicou espaço a um fenômeno que tomava conta do estado: a "perna fantasma" que assombrava a população. A matéria descrevia com detalhes jornalísticos os sucessivos avistamentos do membro inferior que "media mais ou menos um metro e meio, anda de casa todinha, perde-se no meio da parede e transforma-se, por encanto, em fumaça". A publicação cristalizava no papel o mito da Perna Cabeluda, concebida pelo escritor Raimundo Carrero e propagada pelo radialista Jota Ferreira. “Às vezes, a imprensa até ajuda a criar ou consolidar essas narrativas", diz Lídia.
Esse poder de legitimação cultural também seria redirecionado para uma cena que nascia nos mangues do Recife. “A mesma lógica pode ser observada na forma como a mídia apoiou o surgimento do Manguebeat”, confirma a historiadora. A imprensa ajudaria a definir os contornos do movimento, cujo texto “Caranguejos com Cérebro”, de Fred Zeroquatro e Renato L, hoje visto por sua aura poética, nasceu como material de divulgação para uma coletânea, mas que os jornais locais, entre eles o Diario, interpretaram como um manifesto. “Em tempos sem redes sociais, a mídia controlava o que circulava e o que ganhava visibilidade”.
Mas que matéria-prima alimentava essa máquina de registrar e forjar cultura? A resposta está na própria formação do povo pernambucano. O estado se destaca desde sempre, não apenas como território geográfico, mas também por sua potência econômica transformadora. “Ao longo da história, Pernambuco recebeu pessoas de lugares diversos. Algumas voluntariamente, outras como escravizados, além de diferentes grupos indígenas”, aponta Lídia. Desse caldeirão fervilhante de influências emergiram justamente as expressões que o Diario se incumbiria de documentar e, não raro, legitimar.
O veículo, em seus 200 anos, nunca foi um observador passivo. Pelo contrário, foi um cronista que, ao narrar o seu tempo, seja através do frevo, do manguebeat ou mesmo dos mistérios da Perna Cabeluda, acabou por ajudá-lo a se entender. É um espelho que reflete não apenas os rostos, mas o fervor, as lutas, os ritmos, os medos e o orgulho de um povo que nunca deixou de dançar, mesmo sob o sol mais forte.