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Recife e Pernambuco: pioneiros do cinema

DP recorda cineastas, títulos e movimentos que marcaram a história cinematográfica pernambucana, desde os filmes mudos até o auge contemporâneo

Por André Guerra

Longa é um dos mais importantes do cinema pernambucano. Foto: Fred Jordão/Divulgação

Destino estelar ou a culminação de uma longa construção? A celebração do cinema pernambucano em que 2025 se transformou reforça não apenas o auge internacionalmente reconhecido que o estado vivencia, mas também o fato de que ele é ponta de lança na sétima arte brasileira há muito tempo. Entre ondas que impulsionam a cadeia produtiva e mobilizações vanguardistas, o Recife esteve sempre presente nas grandes viradas desse setor — e não raramente como protagonista.

Já na época dos filmes mudos, no começo do século 20, o nosso cinema viveu o famoso Ciclo do Recife, uma fase pioneira que demonstrou a ânsia da cidade em revelar suas belezas e modernidades para o mundo. Essas imagens em movimento, que rodavam em feiras internacionais, foram essenciais na construção do imaginário visual tão marcante da cidade. Nomes como Jota Soares, Ary Severo e Gentil Roiz — célebre por ter dirigido o primeiro filme pernambucano de ficção, Retribuição — marcaram o período e colocaram a capital, desde cedo, no mapa da cena cinematográfica.

E o pioneirismo audiovisual realmente acompanha a nossa história, já que foi no Recife que nasceu o primeiro filme sonoro do Nordeste. Lançado em 1942, o curta O Coelho Sai, de Firmo Neto e Newton Paiva, com a saudosa dama do teatro pernambucano Geninha da Rosa Borges, foi tragicamente queimado em um incêndio, mas o legado de sua ambição artística permaneceu.

Durante a década de 1970, auge da ditadura militar no Brasil, o Recife viveu a efervescência criativa do Ciclo do Super 8. O formato criado na década de 1960 — de câmeras mais leves e frequentemente utilizado para que as pessoas filmassem viagens e festas de família — possibilitou que realizadores, críticos ou apenas amantes do cinema produzissem uma série de filmes. Fernando Spencer, que escrevia para o Diario, foi um dos nomes de ponta do movimento, com filmes premiados pelo país, como Caboclinhos do Recife, Valente é o Galo e Quem Matou Marilyn.

Foi mais um momento em que a cultura cinematográfica conseguiu driblar suas dificuldades — neste caso impostas pela censura — e utilizar o aspecto caseiro do Super 8 para experimentar na linguagem, nos temas e nas presenças dos corpos em cena.

Por volta de 1975, Pernambuco já era o estado nordestino com o maior número de produções desse tipo. Nomes célebres da cultura do estado produziram filmes em Super 8, como Jomard Muniz de Britto, Celso Marconi, Geneton Moraes Neto, Amin Stepple, Flávio Rodrigues, Walderes Soares, Osman Godoy, Paulo Cunha, Geraldo Pinho e ainda a pioneira Kátia Mesel, considerada a única diretora mulher da região nesse período. O ciclo seguiu até o início dos anos 1980 e, com a popularização do vídeo analógico, as produções foram diminuindo cada vez mais, abrindo espaço para que novos cineastas se tornassem aquilo que o Brasil e o mundo hoje reconhecem e valorizam como o “cinema pernambucano”.

Em março de 1990, a Embrafilme (empresa estatal responsável pela produção de filmes brasileiros) foi fechada pelo governo de Fernando Collor de Mello, praticamente inviabilizando a produção em todo o território nacional. Mas a explosão cultural vivida nos anos 1990 se refletiu na propulsão de cineastas autodidatas que, já na década anterior, estavam aquecendo a discussão. Adelina Pontual e Lírio Ferreira estão entre os formados em Comunicação que, com suas reuniões do grupo de jovens cineastas Van Retrô (Vanguarda Retrógrada), surgido na Universidade Federal de Pernambuco, foram fundamentais em uma imensa transformação que se consolidaria após a Retomada.

Em 1996, Baile Perfumado, dirigido pelo próprio Lírio e por Paulo Caldas, marca uma divisão de águas — inclusive por ter sido o primeiro longa rodado no estado em mais de 30 anos. No filme, conhecemos a história do libanês Benjamin Abrahão em sua corajosa jornada para filmar os únicos registros conhecidos de Lampião. Com Chico Science & Nação Zumbi, Mestre Ambrósio, Fred Zero Quatro e Paulo Rafael na trilha sonora, Baile demonstrou como o cinema e o Manguebeat, no auge de sua explosão e difusão, se fortaleceram mutuamente.

Fora desse caminho da profissionalização, mas igualmente representativo da diversidade pernambucana, destacou-se o alagoano Simião Martiniano, que vendia discos de vinil no centro do Recife e ficou conhecido como um produtor de filmes de baixíssimo orçamento, popularmente considerado o “Ed Wood” do Nordeste. Ele se tornou tema do premiado curta-documentário Simião Martiniano: O Camelô do Cinema, dos pernambucanos Clara Angélica e Hilton Lacerda.

Um dos maiores sucessos do cinema e também da televisão brasileira foi comandado por mãos pernambucanas. Em 2000, Guel Arraes, que já havia feito programas de humor de grande sucesso como TV Pirata e A Comédia da Vida Privada, foi responsável pela adaptação O Auto da Compadecida, baseada no texto de Ariano Suassuna e, indiscutivelmente, um dos grandes clássicos do audiovisual nacional.

Já Amarelo Manga, primeiro longa-metragem de Cláudio Assis, lançado em 2002, confirma, na virada do milênio, a força autoral do cineasta natural de Caruaru, que viria a ser reconhecido como uma das vozes mais expressivas e provocadoras do cinema nacional, colecionando prêmios pelo Brasil. Em 2005, Marcelo Gomes também faz sua estreia em longa com o aclamado Cinema, Aspirinas e Urubus, exibido na mostra Un Certain Regard (“Um Certo Olhar”) do Festival de Cannes e um dos mais premiados do país à época.

Em 2013, Renata Pinheiro se tornou a primeira mulher pernambucana a lançar um longa de ficção, com o elogiado Amor, Plástico e Barulho. No mesmo ano, Hilton Lacerda, que ganhou notoriedade pelos roteiros dos filmes de Cláudio Assis, também estreou como diretor solo com Tatuagem, que venceu o Kikito de Melhor Filme no Festival de Cinema de Gramado. Esse também foi um ano de destaque para o então documentarista Gabriel Mascaro, com Doméstica; no ano seguinte, ele lançaria Ventos de Agosto e, em 2016, se tornaria um dos mais prestigiados nomes do cinema pernambucano com o sucesso de Boi Neon.

Jornalista e curta-metragista com vários filmes no currículo, Camilo Cavalcante foi outro importante realizador a estrear em longa nesse período, com A História da Eternidade (2014). No mesmo ano, o preparador de elenco Leonardo Lacca também debutou no formato de longa-metragem, com Permanência. Ambos os filmes, juntamente com Tatuagem, foram estrelados por um dos rostos mais emblemáticos da cinematografia recifense: o ator Irandhir Santos. E aquele ano não parou por aí — o Recife ainda foi visto pela ótica da ficção científica no longa A Seita, de André Antônio, em outra estreia de peso.

As mulheres seguiram ganhando espaço com narrativas ousadas e temas desafiadores, como é o caso do longa documental Câmara de Espelhos (2016), em que a diretora Déa Ferraz discute as dinâmicas de casais através da performance masculina. Já na ficção Amores de Chumbo (2017), a cineasta Tuca Siqueira mostra o reencontro da escritora pernambucana Maria Eugênia com um grande amor, já casado há 40 anos. Clara Angélica não ficou atrás e, em 2022, lançou seu documentário Assim como o Ar, Sempre nos Levantaremos, longa que coloca em pauta a trágica estatística do Brasil como o país que mais assassina pessoas LGBTQIAPN+ no mundo.

A vertente cinéfila independente trouxe ainda realizadores cheios de vontade e repertório que, com o mínimo de recursos, conseguiram explorar várias possibilidades da forma. Um deles foi Felipe André Silva, que estreou em longas em 2017, com Um Homem Sentado no Corredor, mas cujo trabalho mais repercutido foi o curta Cinema Contemporâneo, em que revive alguns de seus maiores traumas. O diretor Fábio Leal foi mais um grande destaque nesse segmento de curtas do Recife dos anos 2010, com trabalhos como O Porteiro do Dia e Reforma, entrando nos longas a partir de Deus Tem Aids (2021), que dirigiu em parceria com Gustavo Vinagre.

Foi exatamente nessa fase áurea do cinema pernambucano que emergiu um de seus nomes mais conhecidos. Formado em Jornalismo pela UFPE, Kleber Mendonça Filho já vinha experimentando com a linguagem durante a década de 1990 e, nos anos 2000, em sua época de crítico, realizou alguns dos curtas mais conhecidos do cinema pernambucano, como Vinil Verde, Eletrodoméstica e Recife Frio. Um de seus curtas, A Menina do Algodão, foi dirigido em parceria com Daniel Bandeira, cineasta que estreou em longa com Amigos de Risco (2007), mas viria a conquistar maior reconhecimento com o incisivo Propriedade, lançado em 2022 no Festival de Berlim.

A repercussão poderosa de O Som ao Redor, estreia em longa de ficção de Kleber em 2013, levou o diretor à consagração entre os grandes autores brasileiros, à medida que seus filmes seguintes — Aquarius (2016), Bacurau (2019, também dirigido por Juliano Dornelles) e Retratos Fantasmas (2023) — figuram entre os mais emblemáticos do país nos últimos anos. Agora, com O Agente Secreto, produção mais ambiciosa já realizada no Recife e cujo prestígio internacional atravessa desde o Festival de Cannes até a atual caminhada rumo ao Oscar, o cinema pernambucano não surpreende: ele atesta e reafirma uma potência que sempre esteve lá — e se revela mais exuberante a cada ciclo.