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Rozenblit, a gravadora 100% pernambucana

Gravadora foi a responsável por eternizar frevos e propagar o ritmo Brasil agora

Por Camila Estephania

Imagem da fachada da extinta Rozenblit, que era localizada na Estrada dos Remédios, no bairro de Afogados. Foto: Jaqueline Maia/DP/D.A Press

Muitos pesquisadores indicam que o frevo é o único gênero musical que têm origem em um só lugar, o Recife. Talvez por isso seja difícil imaginar que os primeiros registros fonográficos do ritmo não foram feitos por recifenses, mas sim cariocas. É o caso do frevo-canção “Borboleta não é ave”, de Nelson Ferreira e J. Borges Diniz, considerado o primeiro a ser gravado, em 1923, pela Casa Edison, no Rio de Janeiro, com interpretação do cantor Baiano.

Apesar da importância inegável das primeiras gravações no sudeste, muitos compositores indicavam que essa realidade gerou disparidades entre o que se ouvia nos discos e nas ruas do Recife. Valdemar de Oliveira e Levino Ferreira, por exemplo, chegaram a dar entrevistas para a imprensa local apontando que a gravações com orquestras cariocas davam predominância ao saxofone e ao clarinete, apagando a estridência dos metais que caracterizavam o frevo, ou que o tambor surdo era tocado no tempo errado.

No livro “O Frevo Gravado”, o jornalista e pesquisador José Teles traz relatos de que essas alterações deixavam os frevos parecidos com o dobrado, abrindo o debate sobre a necessidade de ter mais gravações com artistas pernambucanos. Uma oportunidade veio em janeiro de 1953, quando o empresário José Rozenblit resolveu criar o selo pernambucano Mocambo, com o lançamento de um disco de frevo em 78 rotações, gravado no estúdio da Rádio Clube de Pernambuco.

“Um disco caracteristicamente pernambucano: música da nossa terra, orquestra da nossa terra, compositores e cantores da nossa terra, gravado em aparelhagem aqui da terra”, dizia a notícia do Diario sobre o trabalho, em 4 de janeiro de 1953. A única coisa que não aconteceu no Recife foi a edição, que teve de ser feita no Rio de Janeiro, por falta de gravadora mais próxima.

No repertório estavam o frevo-canção “Boneca”, de Aldemar Paiva e José Menezes, com interpretação de Claudionor Germano, e o frevo de rua “Come e Dorme”, composto por Nelson Ferreira em 1952, em homenagem ao time reserva do Náutico. Essa última já era um sucesso, especialmente entre a torcida do time alvirrubro, que a assumiu informalmente como hino por alguns anos.

Não é à toa que a tiragem inicial de 3 mil cópias do disco vendeu como água, alimentando o sonho de José Rozenblit de ter sua própria gravadora. No ano seguinte, o empresário se juntou aos seus irmãos, Luiz e Isaac Rozenblit, e a Kurt Sondermann para tirar a ideia do papel, abrindo a Fábrica de Discos Rozenblit, em 18 de dezembro de 1954. O grupo já era experiente e tinha outros empreendimentos bem sucedidos no Recife, incluindo as Lojas do Bom Gosto, cujo principal produto eram os LPs, gerando boas expectativas no mercado.

Modernidade

A cobertura da inauguração do novo negócio ganhou grande destaque nas páginas do Diario de Pernambuco, que tratou o evento como um “acontecimento de expressivo relevo cultural e econômico”. O texto destacava que a fábrica contava com o maquinário mais moderno do país na época, “pondo abaixo o ‘tabu’ do sul no que tange ao bom êxito de uma atividade, e, por outro lado, ressaltando, ainda, a inteligência do operário pernambucano”.

Dias antes da abertura, o jornal já vinha destacando se tratar da primeira indústria do tipo instalada no “norte do Brasil” (na época, não havia divisão entre norte e nordeste), com a estimativa de produzir 400 mil discos mensais, lançados pelos selos norte-americanos Mercury e Secco, além do pernambucano Mocambo. Posteriormente, o catálogo da Rozenblit cresceu ainda mais com a adesão de novos selos, como Emarcy e Wing, também dos Estados Unidos, e os nacionais Passarela, Arquivo, Artistas Unidos e Solar.

A música do estado, claro, já tinha lugar reservado no catálogo da gravadora, que tinha também a proposta de atender as reivindicações dos artistas locais por mais espaço midiático. Nesse sentido, o frevo saiu na frente. De acordo com matéria publicada em 19 de dezembro de 1954, o primeiro disco a sair das prensas pernambucanas teria novas composições do maestro Nelson Ferreira para o segmento. Aliás, seria ele o primeiro responsável pela superintendência artística do estúdio da Rozenblit, cujas obras foram finalizadas em 1956.

Com isso, além de garantir o registro de frevos executados adequadamente, a chegada da Rozenblit também foi determinante para que o gênero musical recifense fosse amplamente difundido. “Até 1953, os frevos eram gravados no Rio com tiragem limitada, dirigida ao mercado pernambucano. Com a inauguração da Rozenblit, os discos de frevo passaram a ser divulgados em todo o Nordeste e o gênero passou a competir com a música carnavalesca carioca”, explica José Teles, em entrevista ao Diario.

Grande parte do alcance se devia ao suporte dado pela gravadora em todas as etapas da cadeia produtiva de um álbum. Além de gravar as músicas e prensar o disco, a fábrica também assumia a responsabilidade pela arte das capas e promovia coquetéis de lançamento dos trabalhos, por exemplo.

Tornou-se uma tradição da gravadora lançar discos com novos frevos próximo ao período carnavalesco, dando origem a alguns clássicos do gênero, como a série “Capital do Frevo”, iniciada em 1958, contando com novas edições até meados dos anos de 1980. Com o sucesso comercial desses trabalhos, as gravadoras do sudeste, como a RCA, renovaram o interesse pelo segmento e passaram a investir mais nele. Teles avalia que isso levou o maestro paulista Aristides Zaccarias a se tornar o recordista em gravações de frevo até 1960, mas muitos pernambucanos também surfaram nessa onda.

“Grandes compositores, como Levino Ferreira, Zumba, até mesmo Capiba, tiveram frevos lançados por gravadoras do Sudeste. O que levou José Rozenblit a estabelecer uma norma: quem lançasse frevos por outras gravadoras não teria músicas suas gravadas na empresa. Causou polêmica. Rozenblit negou, mas muitos autores confirmaram”, revela o pesquisador.

A medida evidenciava a autoestima do empresário para competir com as gravadoras do sudeste, mesmo que, ao longo dos anos, seu maquinário tenha ficado atrasado em relação às concorrentes. Até meados dos anos de 1970, por exemplo, só haviam mais quatro gravadoras no Brasil, além da Rozenblit, o que implica dizer que, mesmo mal das pernas, cada uma delas concentrava um poder midiático enorme.

Relevância Nacional

Tanto é que as atividades da Rozenblit iam muito além do Recife, sendo o frevo um produto financeiramente secundário, na realidade. Segundo Teles, as filiais mais rentáveis eram as do Rio de Janeiro e de São Paulo (fora elas, ainda havia outra no Rio Grande do Sul). “Durante algum tempo, João Araújo (pai de Cazuza) foi diretor da filial do Rio. Mais tarde, ele levou para a Som Livre, gravadora da Globo, formatos em que a Rozenblit foi pioneira, como as trilhas de novela, por exemplo”, lembra o pesquisador sobre a popularidade dos trabalhos lançados pela fábrica recifense.

“Três dos maiores sucessos o carnaval brasileiro saíram da gravadora: o samba ‘Oba (o Bafo da Onça)’, de Oswaldo Nunes, ‘Cabeleira do Zezé’, de Roberto Faissal e João Roberto Kely, e ‘Máscara Negra’, de Zé Kéti e Pereira Matos. Além dos ídolos do iê-iê-iê, como Martinha, Bobby de Carlos e The Snakes, que foi o primeiro grupo de Erasmo Carlos”, continua.

Logo, o catálogo de música popular brasileira era o mais forte da Rozenblit, que ainda foi responsável, por exemplo, pelo lançamento do primeiro disco de Tom Zé (1968) e do álbum “O Bidú: O Silêncio no Brooklin” (1967), de Jorge Ben.

Com os selos internacionais também teve papel fundamental para trazer para o Brasil os primeiros discos de blues, rhythm and blues e rock steady (que deu origem ao reggae). Teles destaca especialmente a importância dos lançamentos do selo Seeco, especializado em ritmos cubanos, cuja distribuição pela Rozenblit influenciou a música contemporânea de diversos estados do Norte e Nordeste.

Como desdobramento da parceria com a Secco, o cantor cubano Bienvenido Granda veio ao Recife em 1957 para gravar nos estúdios da Rozenblit e causou grande comoção na cidade. Durante a estadia, realizou quatro shows lotados no auditório do Palácio do Rádio, recebendo uma “consagração sem precedentes” do público da capital, que assistiu à apresentação entre desmaios e gritos, como contou o Diario de 4 de agosto daquele ano.

O episódio ilustra bem o prestígio que a Rozenblit trouxe para o Recife a partir dos anos de 1950, colocando a cidade na rota de diversos artistas de fora do estado e aquecendo o cenário musical da capital pernambucana. Já na década de 1970, a gravadora foi fundamental também para a cena Udigrudi, como ficou conhecida a psicodelia pernambucana.

Entre os trabalhos desse cenário que foram gravados na Rozenblit ou lançados por ela estão títulos emblemáticos como “Paêbirú” (1975), de Zé Ramalho e Lula Côrtes, “Satwa” (1973) de Lula Côrtes e Lailson de Hollanda; “No Sub Reino dos Metazoários” (1973), de Marconi Notaro, e “Flaviola de Bando do Sol” (1974), de Flaviola. Apesar do grupo representar um momento de efervescência cultural em Pernambuco, já chegou em uma fase mais delicada da gravadora.

Cheia de 1975 e declínio

A partir de 1966, a Rozenblit, localizada na Estrada dos Remédios, foi assolada por diversas cheias do Rio Capibaribe, sendo a pior e última delas em 1975. Em 2 de agosto daquele ano, José Rozenblit disse ao Diario que todo o equipamento de som importado havia sido atingido pelas águas, que chegaram a dois metros de altura.

Por conta desses episódios, diversas fitas masters se perderam, inclusive a do disco “Paêbirú”, que tinha acabado de ser gravado no local e nem havia sido lançado ainda. Esse último trabalho só não se perdeu totalmente, porque a cineasta Kátia Mesel, na época casada com Lula Côrtes, havia levado 300 cópias do LP para casa. Durante muitos anos, estes foram os únicos exemplares do disco, que passou a ser considerado um dos mais raros da música brasileira.

Outros títulos não chegaram a ter a mesma sorte. Ainda na entrevista ao Diario, em agosto de 1975, Rozenblit disse que obras inéditas de Gilvan Chaves e Catulo da Paixão Cearense, por exemplo, se perderam totalmente com a tragédia. Além do prejuízo cultural imensurável, as cheias representaram um revés financeiro difícil de contornar.

A manutenção da Rozenblit ficou por um fio durante alguns anos. A crise acabou trazendo a necessidade de abrir as portas para alguns trabalhos embaraçosos, como as gravações de canções do general João Figueiredo, em 1980, quando era presidente do Brasil durante a Ditadura Militar. O trabalho contou com arranjos do maestro Clóvis Pereira que, na época, era responsável pela direção artística dos estúdios da Rozenblit.

Em 1985, em meio a diversos processos judiciais de ex-funcionários e artistas, José Rozenblit encerrou as atividades da fábrica e, três anos depois, chegou a ser preso brevemente por não ter pago débitos trabalhistas de empregados. De acordo com a edição do Diario de 27 de setembro de 1988, o empresário deixou o Presídio Aníbal Bruno por conta de problemas de saúde. Depois, levou uma vida reservada, mas teve seu legado reconhecido em diversas ocasiões, como no Carnaval do Recife de 2003, em que foi homenageado.