Carnaval se consolida entre polêmicas
Com um primeiro registro feito há 180 anos, a folia passou por diversos modelos ao longo das gerações até encontrar a sua identidade
Desde o primeiro registro de Carnaval em Pernambuco, há 180 anos, até os dias de hoje, o Diario dedicou muitas de suas páginas à folia. Elas evidenciam a relevância que o tema ganhou na vida dos pernambucanos, transformando-se em um elemento formador da identidade local ao longo dos anos. Tanto que, em 2000, a manchete da edição de 8 de março sintetizava o sentimento proporcionado pela festa: “Folia resgata a pernambucanidade”.
Na ocasião, o Diario destacava a predominância das expressões culturais locais durante a festa no estado. Um cenário muito diferente daquele descrito pelo jornal em 13 de fevereiro de 1845, quando deu a primeira notícia sobre um baile de máscaras, que caracterizava os primeiros passos do Carnaval de Pernambuco. “O divertimento inocente, inteiramente novo para esta província, teve estas feições: ordem, decência, regozijo e bom gosto”, dizia o texto sobre a festa, que aconteceu na Passagem da Madalena, hoje Rua Benfica.
As características contrastavam com as do entrudo, a brincadeira portuguesa que até então acontecia nos dias de Carnaval, quando as pessoas melavam umas às outras com água, farinha, pó-de-carvão, graxas e pó de café. Considerada bárbara pela elite brasileira, a prática foi proibida em 1822 através de uma portaria que logo virou letra morta. Até mesmo integrantes do Império praticavam o costume mesmo após a proibição, deixando resquícios no Carnaval do país durante muitos anos. Sob a denominação de mela-mela, práticas do entrudo foram vistas ainda nos corsos dos anos de 1970.
Apontado como mais "civilizado” pela elite, o baile de máscaras ganhou sua primeira versão pública somente em 1848, de acordo com o livro "Carnaval do Recife", do jornalista e pesquisador Leonardo Dantas Silva. Em seguida, os bailes passaram a ser uma constante, acontecendo principalmente nos teatros de Santa Isabel e Santo Antonio. Essas primeiras festas eram animadas por orquestras, e os ritmos mais executados eram quadrilhas, valsas, xotes e galopes.
A partir de 1850, os foliões começaram a sair dos salões e tomar as ruas. Datam dessa época as primeiras manifestações, com as pessoas desfilando a pé, a cavalo ou em carros puxados por cavalos, que seriam os antecessores do corso. Depois da abolição da escravatura e do fim do Império, começam a surgir mais clubes populares. É o caso dos clubes da Vassourinha, formado em 1889 por varredores de rua, e das Pás, fundado no ano seguinte pelos carvoeiros. No início do século XX, o frevo começa a ganhar as ruas e se firmar como marcha carnavalesca pernambucana.
Dos anos de 1920 em diante, há um crescimento das agremiações populares e a classe média passa a participar da festa. Entre os anos de 1930 e 1950, a música pernambucana de Carnaval, especialmente o frevo, atinge seu auge. É somente nessa época que começa a se estabelecer uma ideia de "pernambucanidade", ou seja, de identidade pernambucana a partir da folia.
“Essa ideia de pernambucanidade é herdeira de uma noção de brasilidade. A identidade brasileira, por exemplo, é uma construção dos anos 1920 aos anos 1940, sobretudo. Como identidade cultural, tem nos elementos da cultura uma base muito forte. A gente pode transpor essa lógica também para essa forma de identidade local da pernambucanidade", explica Rafael Moura, produtor cultural e Doutor em Antropologia pela UFPE.
Ele indica que, a partir da década de 1930, a disputa entre manifestações culturais do estado, como o frevo, e expressões musicais tradicionalmente ligadas a outros lugares, como o axé e o samba, passaram a acionar a ideia de pernambucanidade ao longo dos anos. “Se a gente observar, o Carnaval está diretamente relacionado a todas essas disputas – em parte por ser uma festa de fato bastante relevante para a cultura local – sobretudo Recife e Olinda, centro do poder local –, em parte por ser o frevo quase um sinônimo da festa”, comenta.
Carnaval-espetáculo x Carnaval-participação
A partir da década de 1930, também começa uma disputa entre diferentes modelos de folia. O carnaval-participação, como ficou conhecido o modelo de Carnaval de rua em que o povo participava dos desfiles dos blocos, troças e clubes, era o que vigorava até então. No início, esse modelo foi marcado pela rivalidade entre agremiações, que chegaram a protagonizar alguns confrontos físicos entre elas, como aconteceu entre os clubes das Pás e Lenhadores em 1907. O episódio foi descrito pelo jornalista Osvaldo Almeida, em entrevista ao Diario, em 23 de novembro de 1944.
A folia acontecia espontaneamente, sem a gestão de nenhum órgão e, para organizar o cenário, a Federação Carnavalesca Pernambucana foi criada em 1935. Em 3 de janeiro daquele ano, o Diario noticiou o fato: “Dirigiu os trabalhos o Sr. J. Pinheiro, que convidou os secretários Mário Mello e Camucé Granja. Disse, em breves palavras, que o Carnaval do Recife tinha uma originalidade que era preciso conservar, mas ao mesmo tempo era preciso fazer com que Pernambuco se tornasse centro de turismo. Para isso, se pensou na organização da Federação por pessoas alheias aos clubes, para que não haja rivalidades naturais entre estes”.
Buscando ordenar a festa e atender os interesse de um mercado turístico, a Federação estabeleceu uma passarela, por onde as agremiações se apresentariam e seriam julgadas por comissões. Desse modo, haveria também premiações para melhores passistas e fantasias, por exemplo. Nesse formato, que ficou conhecido como carnaval-espetáculo, as pessoas assistiam os desfiles da plateia. O modelo se manteve mesmo após a Prefeitura do Recife assumir a organização da festa a partir de 1955.
Com o passar do tempo, o formato gerou controvérsia entre os foliões. “A participação foi cedendo lugar ao espetáculo. O carnaval passou a ser uma comédia ou uma tragédia, como querem alguns, pois não tinha mais participação, nem tão pouco espetáculo”, escreveu Leonardo Dantas Silva, na edição do Diario de 28 de novembro de 1974.
Por outro lado, em Olinda, o carnaval-participação voltava a crescer na década de 1970, cristalizando-se de vez em 1977. Naquele ano, o prefeito da cidade, Germano Coelho, alegou que o poder municipal estava sem recursos para fazer o Carnaval e convocou as agremiações e a população para cuidarem da festa. O que era crise virou um sucesso e serviu de exemplo para a capital: “Carnaval sem palanque, sem concurso, sem oficialização, estritamente carnaval festa do povo”, descreveu a cobertura do Diario, em 24 de fevereiro.
É nesse contexto que um grupo de foliões recifenses - insatisfeito com o rumo que o Carnaval da cidade estava tomando - criou o Clube de Máscaras do Galo da Madrugada no final de 1977. Em 20 de janeiro do ano seguinte, o Diario noticiou que agremiação tinha o “propósito de reviver origens e tradições dos nossos melhores carnavais de rua através das manifestações mais espontâneas: os clubes de frevo e os grupos de mascarados”. A iniciativa mudaria as tradições da folia na capital pernambucana, deslocando a abertura para o sábado e influenciando as pessoas a buscarem mais pelo carnaval-participação.
Rafael Moura avalia que vários aspectos influenciam nas transformações pelas quais o Carnaval passou. Dentre eles, questões mais globais, como a transformação da cultura em um ativo turístico naquele momento, implicando na mercantilização do Carnaval a partir da organização da festa, e também o contexto nacional. “Em um momento de repressão política, há uma demanda de ocupação dos espaços públicos pelas classes médias como forma de resistência”, aponta.
Para Rita de Cássia Araújo, historiadora e pesquisadora da Fundaj, o modelo de carnaval de rua também contribuiu para que os pernambucanos reconhecessem sua identidade naquele espaço, através da folia. "Naquela época não se falava em direito à cidade nesses termos, mas tinha a percepção de se estar ocupando a cidade, de que a cidade também é minha. Dava esse sentimento de pertencimento e reconhecimento social", pontua.
A raízes do Carnaval "Multicultural”
Moura ainda defende que algumas particularidades específicas do cenário recifense também contribuíram para a construção de novos modelos de carnaval na cidade. De acordo com o pesquisador, o surgimento das bandas Quinteto Violado, em 1971, e Banda de Pau e Corda, em 1972, por exemplo, abriu a necessidade de se apresentar o frevo em outros espaços.
Essas bandas traziam inovações para o frevo-canção e frevo de rua, encontrando sucesso dentro do segmento, embora também houvesse críticos a esses trabalhos. “A partir daí, os dois grupos passam a querer participar da festa, mas sem encontrar espaço nos clubes sociais - porque eram dominados pelas orquestras - ou nas ruas – que eram o espaço das agremiações de chão”, explica o pesquisador.
A criação de um novo polo de animação em Boa Viagem foi a solução encontrada pela Banda de Pau e Corda, em 1976, com apoio da Empetur. Nesse endereço, era instalado um palanque para a banda se apresentar. A fórmula deu tão certo que, ao longo dos anos, o polo cresceu e a Avenida Boa Viagem passou a receber também diversos blocos e troças, permitindo uma experiência mista entre shows e carnaval-participação, que hoje é vista no Recife Antigo.
A adesão dos foliões ao modelo levou o Diario a noticiar, em 12 de fevereiro de 1986, que os clubes sociais estavam ameaçados pelo pólo: “Muita gente acabou optando por brincar os quatro dias na Zona Sul, onde havia todos os ingredientes para uma boa folia: orquestras, facilidade de acesso, tempo integral, comidas e bebidas a preços acessíveis. Além do detalhe de ser de graça".
Em 1994, como comprovação desse sucesso, o Diario publicou uma pesquisa feita pelo DP-Arconsult indicando que 39% dos recifenses que passariam o Carnaval na capital pernambucana preferiam a folia de Boa Viagem. O Centro da Cidade, onde ainda se praticava o modelo de passarela, ficou em segundo lugar, com 26% dos votos.
Porém, na mesma década, a zona sul também ficou estigmatizada pela multiplicação de trios elétricos em que predominava a música baiana, especialmente no pré-carnaval. A mudança aquece novamente os debates sobre o modelo de Carnaval executado no Recife e sobre a necessidade de dar mais prestígio às expressões culturais do estado.
Para pôr um ponto final na questão, ao assumir a Prefeitura do Recife em 2001, João Paulo acabou com o Carnaval de Boa Viagem e distribuiu a folia entre outros polos descentralizados. O Carnaval no Bairro do Recife também é reformulado, inaugurando os shows no Marco Zero. A gestão apresentou o modelo sob o slogan de “Carnaval Multicultural do Recife”, defendendo haver a predominância de artistas e agremiações de diferentes segmentos culturais do estado, além de trazer nomes do Brasil para os palcos.
“Uma festa que reúne a família. Reúne também as coisas que parecem antagônicas, como o rock do Rec Beat, na Rua da Moeda, ou ritmo mais lento do bloco da Saudade, que desfila pela Rua do Bom Jesus”, constatou o Diario, ainda na segunda de Carnaval, em 26 de fevereiro de 2001, sobre a vocação diplomática do formato. O modelo permanece até hoje, apesar do termo “multicultural” não ser mais utilizado oficialmente desde a gestão do ex-prefeito Geraldo Júlio.