A história do Recife da vila de ilhotas ao pulso urbano de Pernambuco
Recife tornou-se capitl de Pernambuco em 1827 e mudou cena do estado, sob cobertura do Diario de Pernambuco
Recife nasceu por volta de 1537 onde o mar e os rios formam labirintos, com um conjunto de ilhas e canais que pareciam convites para quem viesse negociar o mundo. Nasceu, como tantas cidades coloniais brasileiras, por necessidade logística, um porto natural para a exportação do açúcar, que moldou a região.
Mas a trajetória do Recife, de aglomerado de palafitas à capital econômica e política de Pernambuco, é também a história de embates de poder, transformações urbanas e reinvenções culturais. O Diario esteve entrelaçado nesta história por meio de seus noticiários.
Antes do Recife tornar-se o centro, Olinda era a cabeça, a sede administrativa da Capitania de Pernambuco criada por Duarte Coelho em 1537. Esta cresceu como cidade-sede do latifúndio açucareiro, com Igrejas, sobriedade clerical e grandes engenhos que transformavam cana em riqueza transatlântica. Recife, ao sul, era até então um porto que servia para embarcar açúcar e importar escravizados e insumos. Essa relação entre um litoral portuário e a cidade-sede no alto da colina seria decisiva nos séculos seguintes.
A invasão holandesa, em 1630, mudou o cenário. Os neerlandeses, atraídos pelo açúcar pernambucano, transformaram a região e fizeram do litoral recifense a base administrativa de sua ocupação do Nordeste, a famosa Mauritsstad, com planejamentos, fortificações, canais e um perfil urbano inspirado no litoral baixo dos Países Baixos.
O historiador Bruno Miranda destaca que “naquele momento, o Brasil integrava a Monarquia Hispânica: Portugal e Espanha estavam unidos sob o reinado de Felipe 4º, que governava ambos os reinos”. “Os holandeses, em sua propaganda, alegavam que os portugueses estavam descontentes com o domínio espanhol e que, por isso, a conquista do Brasil seria fácil. Essa narrativa, contudo, era mais um instrumento retórico do que uma realidade política. Na prática, a Monarquia Hispânica continuou atuando ativamente na defesa do Brasil e, junto aos próprios portugueses, organizou expedições para resistir e reconquistar os territórios atacados pelos holandeses”, disse.
Recife, até então porto, converte-se em sede administrativa das forças holandesas e núcleo de intensa atividade cosmopolita, com trapiches, armazéns, comerciantes de muitas origens (incluindo uma comunidade judaica) e fortificações que reconfiguraram a paisagem.
Bruna Miranda explica que os holandeses “passaram a ocupar e ampliar a área portuária, que até então era bastante limitada, e implantaram novas zonas de habitação, comércio e administração. Elaboraram também um plano urbanístico para a Ilha de Antônio Vaz, onde hoje se localizam os bairros de Santo Antônio e São José, com ruas alinhadas, canais e áreas planejadas para edificações públicas e residenciais. Foi nesse conjunto, o Recife e a Ilha de Antônio Vaz, que se estruturou a cidade holandesa, organizada de forma racional e com um traçado urbano único naquele momento. Essa reorganização lançou as bases do que viria a ser o centro histórico do Recife.”
A expulsão dos holandeses, em 1654, e as batalhas nos arredores, como as de Guararapes, devolveram a capitania ao domínio luso-católico. Olinda sofreu danos e, apesar de sua tradição como centro nobre, acabou perdendo o eixo econômico e demográfico para o Recife, que manteve a intensidade do comércio e um dinamismo antes gerido por Olinda, em sua colina feudal, que já não acompanhava tão bem o crescimento vertiginoso da província.
Quase cem anos depois, o episódio conhecido como “Guerra dos Mascates”, ocorrido entre 1710 e 1711, se formou quando comerciantes entraram em confronto com a oligarquia rural de Olinda por direitos municipais e autonomia. Essa derrota simbólica e prática para as elites de Olinda pavimentou, ao longo do século seguinte, o caminho para a afirmação recifense.
Diario de Pernambuco a imprensa que fez o Recife falar
No limiar do século XIX o mundo mudou, com mais independentismo, reformas administrativas e a chegada da Era das ideias. Em 1825 surge o Diario de Pernambuco, que se tornou um veículo central do debate público local, trazendo voz para uma cidade que fala, reclama e organiza interesses. O jornal ajudou a articular olhares críticos sobre administração, comércio e saúde pública.
Entre os anos 1820 e 1830 Recife muda formalmente de patamar. Em 1823 a cidade já ganhava estatuto mais elevado e, sobretudo, em 1827, Recife é consolidada como a capital oficial da província de Pernambuco - uma mudança que chancela o deslocamento do poder administrativo de Olinda para o porto. A capitalidade oficial permitiu investimentos, construção de sedes administrativas, casa-de-governo e maior protagonismo nas decisões provinciais.
“A província havia passado, pouco antes, por um grande trauma: a Confederação do Equador, duramente reprimida, com muita violência. Pernambuco perdeu mais da metade do seu território, e a elevação do Recife à condição de capital apenas oficializou uma realidade que já existia desde o século XVII”, relembra o doutor em História pela Universidade de Salamanca e presidente do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP), George Cabral.
Nas edições de 1827, o Diario reproduziu o conteúdo das resoluções que oficializaram a capitalidade e destacou a reorganização das repartições públicas. As matérias seguiam o formato da época: textos longos, sem títulos intermediários, voltados à divulgação de decisões administrativas e informações de interesse público.
A cobertura também revelou posicionamentos. O jornal deu espaço a opiniões favoráveis à mudança, enfatizando a infraestrutura portuária e a centralidade econômica do Recife. Ao mesmo tempo, publicava cartas e notas que expressavam divergências entre setores da sociedade. Parte da elite de Olinda demonstrava resistência à perda do status político, enquanto comerciantes e armadores recifenses defendiam que a transferência refletia a realidade econômica da província.
O fundador do Diario de Pernambuco, Antonino Falcão, que havia participado da Confederação do Equador em 1824, mantinha uma linha editorial próxima das ideias liberais. Sob sua direção, o jornal atuou como mediador entre autoridades e leitores, transformando documentos oficiais em instrumentos de debate público.
A partir de 1827, o Recife passou a concentrar as principais repartições administrativas e a própria estrutura política da província. O Diario acompanhou essas mudanças com regularidade, publicando avisos de instalação de órgãos, relatórios de obras e informações sobre o funcionamento do novo aparato estatal. A prática jornalística adotada, voltada à documentação e à publicidade dos atos oficiais, contribuiu para institucionalizar o papel do jornal como fonte de registro público.
Agora como capital, Recife passa por uma sequência de transformações palpáveis, recebendo obras de aterramento e construção de pontes sobre os canais, instalação de alfândega e ferrovias, ligando o interior açucareiro ao porto e intensificando o tráfico negreiro urbano, importante receita econômica da colônia portuguesa.
Recife foi um dos principais portos de desembarque de africanos escravizados no Brasil, e sua economia urbana dependia disso. Ao mesmo tempo, as elites liberais e mercantis fomentavam uma estética urbana, com casas, teatros e praças que compactuavam com a ambição de se mostrar como centro moderno.
Século 20: o Recife se molda ao que conhecemos hoje
Recife também é uma cidade de inundações, de doenças e de saneamento tardio. No início do século 20 as preocupações com saúde pública, com presença de cólera, febre amarela, problemas de drenagem, fizeram as administrações investirem em obras hidráulicas, saneamento e reorganização de bairros.
Nas edições da época, o Diario publicou comunicados das autoridades sanitárias e avisos sobre medidas emergenciais, expondo relatos de casos, ordens de quarentena, instruções sobre isolamento de doentes e determinações sobre higiene pública. Os periódicos reproduziam textos oficiais emitidos pela prefeitura, pela inspetoria de saúde ou por conselhos técnicos.
Ainda no século 20, o Recife presenciou a expansão de bairros como Boa Viagem e a construção de novas avenidas. A cidade deixou de ser um porto para se tornar uma metrópole de serviços, indústrias e cultura.
“Pernambuco tem o privilégio de dispor de um jornal que atravessou três séculos: nasceu no século 19, percorreu o 20 e chega ao 21 registrando dois séculos de acontecimentos. Em 200 anos, registrou os momentos mais dramáticos e relevantes da nossa história. Ter um jornal que registra o que se pensa e o que se faz em política, economia e sociedade oferece a Pernambuco uma fonte histórica de primeira grandeza. É por isso que o Diario de Pernambuco tem grande relevância: é o periódico em circulação mais antigo da América Latina e também o jornal em língua portuguesa mais antigo em atividade no mundo. Um tesouro da nossa história”, afirma o historiador George Cabral.