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Duas mil crianças com menos de 4 anos morreram agredidas em 10 anos

Publicado em: 14/04/2021 10:48 | Atualizado em: 14/04/2021 13:38

 (Foto: Editoria de arte / Correio Braziliense)
Foto: Editoria de arte / Correio Braziliense
Os desdobramentos da investigação sobre a morte do menino Henry Borel, 4 anos, evidenciam cada vez mais um cenário em que a criança foi vítima de violência intrafamiliar grave. O crime, entretanto, está longe de ser um caso isolado. Na última década, mais de 100 mil crianças e adolescentes morreram vítimas de agressões – 2 mil delas tinham menos de 4 anos de idade. Os dados são da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Segundo a entidade, o isolamento social, que se tornou necessário em decorrência da pandemia de Covid-19, pode ter aumentado a incidência de violência doméstica e, consequentemente, o número de casos letais.

De 2010 a 2020,103.149 crianças e adolescentes foram mortos nesse contexto de agressão. Quando se observa a faixa etária de 0 a 9 anos, em 83% dos casos a agressão é intrafamiliar, na qual os agressores são pais e mães. Além disso, em mais de 60% dos casos, é na própria residência que a criança morre. Juntamente com os acidentes, as agressões representam a maior causa de morte a partir de um ano de idade até aos 19 anos. Apesar de os números chamarem a atenção, o presidente do Departamento Científico de Segurança da SBP, Marco Gama, indica que os dados são subnotificados.

“Tem uma grande subnotificação. Muitas vezes, é notado que a criança sofreu agressão quando chega morta. Mas, em outras vezes, essa criança chega em estado grave e é internada, por exemplo, com traumatismo craniano em decorrência de uma agressão. Depois, morre e não entra nessa estatística de vítimas da agressão”, explica. Em 2020, especificamente por causa da pandemia, os números deverão ser ainda mais subnotificados.

Sem opções de recorrer a outros ambientes, como as escolas, as crianças enfrentam mais dificuldade para denunciar. “Uma das coisas que ajudava na notificação era a escola, o contato com o colega, ir às consultas de rotina nos postos de saúde, nas quais é possível notar que a criança não está desenvolvendo. Então, isso tudo parou em função da pandemia, e essas crianças ficaram presas em casa na mão do agressor, e o jeito de pedir socorro ficou menor”, avalia Marco Gama.

De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil foi, em 2020, uma das nações que mais sofreu com escolas fechadas. “Então, em 2020 a subnotificação foi maior porque, certamente, tivemos muito menos denúncias e, seguramente, os abusos foram muito maiores”, alerta o pediatra.

Marco Gama ressalta, no entanto, que esse quadro está longe de ser decorrência exclusiva da pandemia. “As situações de violência doméstica costumam ser casos crônicos, repetitivos, de violência progressiva”, contextualiza o especialista.

Por se tratar de um fenômeno social, a presidente da SBP, Luciana Rodrigues, defende uma ação abrangente. “O Brasil precisa estar preparado para, por meio da efetiva implementação das políticas de prevenção à violência na infância e na adolescência, garantir ações articuladas entre educação, saúde, segurança e assistência social”.

Segundo os especialistas, há sinais físicos e psicológicos que indicam a situação de violência. A médica pediatra Luci Yara Pfeiffer, única representante da América Latina no grupo de trabalho focado em desenvolvimento familiar ligado ao Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da Organização das Nações Unidas (ONU), faz um apelo. “Todos que testemunham violências contra crianças, ou que tenham suspeita de que estejam sendo agredidos, seja física, seja psíquica, seja sexualmente, precisam notificar, tentar orientar, acompanhar e proteger. Elas dependem de todos nós para crescer em uma vida digna e saudável”.

Rotina de agressões a Henry

O novo depoimento da babá Thayná de Oliveira Ferreira à polícia carioca reforçou os indícios de que o menino Henry Borel, de 4 anos, sofria agressões reiteradamente na casa onde morava com a mãe, a professora Monique Medeiros, e o vereador Jairo Souza Santos Júnior, o Dr. Jairinho. Pressionada pelas evidências, a funcionária do casal admitiu, na segunda-feira, que havia mentido para os investigadores e narrou novos elementos que ajudarão a identificar as circunstâncias da morte da criança, em 8 de março. Thayná Ferreira falou durante mais de oito horas na 16ª DP (Barra da Tijuca). A advogada Patrícia Sena, que acompanhava a ex-funcionária do casal, disse que sua cliente contou ter apagado mensagens de WhatsApp nas quais relatava agressões de Dr. Jairinho a Henry Borel.

“Ela narrou toda a dinâmica dos fatos”, dissea disse gdisseem entrevista a emissoras de televisão. “Enfim, ela disse tudo o que tinha para dizer, sem colocar nada que desabonasse a conduta dela. Ela fez o que deveria ter sido feito.”

A partir da análise das mensagens apagadas de WhatsApp, recuperadas com a ajuda do aplicativo israelense Cellebrite Premium, a polícia concluiu que a babá mentira no primeiro depoimento. Os investigadores cogitaram a hipótese de decretar a prisão de Thayná Ferreira por falso testemunho, mas optaram por permitir a retratação e um novo depoimento no inquérito. O conteúdo dessas novas declarações não foi oficialmente divulgado, mas foi em parte obtido pela TV Globo.

De acordo com a emissora, Thayná afirmou no depoimento que não viu as agressões do político contra o menino, mas soube que ocorriam — pelo menos duas vezes. A babá contou que, em uma ocasião, os dois entraram em um quarto no apartamento no Condomínio Majestic, na Barra da Tijuca, na zona oeste da capital fluminense. Segundo Thayná, Dr. Jairinho aumentou muito o volume da televisão – aparentemente, para abafar ruídos. Depois que saíram, Henry disse que estava com dores de cabeça e se sentia mal.

A babá afirmou ainda que outras pessoas – uma empregada e parentes do casal – sabiam das agressões de Dr. Jairinho contra o menino. Ela narrou um episódio em que relatou a Rosângela Medeiros, mãe de Monique, o fato de Henry “estar mancando”, sentir “dores de cabeça” e exibir manchas roxas pelo corpo. A babá acrescentou à avó do menino que não havia possibilidade de a criança estar mentindo sobre agressões.

Ainda na nova versão à polícia, Thayná Ferreira disse que havia mentido no primeiro depoimento por ter medo de Dr. Jairinho. O político, formado em medicina, foi eleito com base eleitoral em Bangu, na zona oeste, em região dominada por milicianos. É filho do ex-deputado estadual Coronel Jairo, policial militar da reserva e que esteve preso na Operação Furna da Onça, que investigou corrupção na Assembleia Legislativa fluminense.

Dr. Jairinho e Monique Medeiros foram presos provisoriamente, por 30 dias, na semana passada, por determinação da Justiça. Eles são acusados de atrapalhar as investigações. É possível que, com o depoimento de Thayná, o inquérito se acelere e, com a denúncia pelo Ministério Público, seja pedida a prisão preventiva dos suspeitos.

Monique Medeiros decidiu trocar de advogado. Será defendida por Thiago Minagé, criminalista que integrou a equipe de defesa do ex-deputado Eduardo Cunha. Até então, seu defensor era André França Barreto, o mesmo de Dr. Jairinho. Há expectativa de que, a partir de agora, os dois suspeitos tenham estratégias de defesa divergentes.
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