HONRARIA
Ideias racistas levam à revisão de homenagens a cientistas
Por: Reinaldo José Lopes
Por: FolhaPress
Publicado em: 15/08/2020 16:31
Foto: Arquivo Pessoal |
A forte influência do racismo e da ideia de supremacia branca sobre alguns dos mais importantes cientistas da história está levando a atual geração de pesquisadores a rever honrarias que homenageiam seus antecessores preconceituosos, a exemplo do que tem acontecido com figuras de outras áreas.
Há uma petição para alterar o nome dos Jogos Lineanos, competição anual de estudantes organizada pela Sociedade Entomológica da América (EUA). Hoje, a disputa homenageia o sueco Carl von Linné (1707-1778), criador do sistema usado para classificar os seres vivos até hoje, cuja obra dividiu os seres humanos numa hierarquia de raças com os europeus no topo.
No Reino Unido, a Universidade de Cambridge decidiu remover um vitral dedicado a Ronald Fisher (1890-1962), um dos fundadores da genética moderna -e também um defensor da eugenia, a ideia de que seria desejável controlar a reprodução humana com vistas a um suposto "melhoramento da raça".
E o University College de Londres pode tirar de dois de seus prédios os nomes de outros defensores da eugenia, o polímata Francis Galton (1822-1911), primo de Darwin e responsável por cunhar o termo, e o matemático Karl Pearson (1857-1936), um dos pais da estatística moderna.
Embora os alvos desse revisionismo científico tenham, em geral, morrido há 50 anos ou mais, visões parecidas ainda estão presentes nas falas de gente como o ganhador do Nobel James Watson, 92. E a influência da eugenia e do darwinismo social continua viva em grupos de extrema-direita e neonazistas, diz a antropóloga Adriana Abreu Dias, cujo doutorado na Unicamp analisou o comportamento dos partidários dessas ideologias na internet.
"São grupos que enxergam o homem branco heterossexual como o único modelo verdadeiro da humanidade e que desprezam todos os demais humanos. Mesmo as mulheres, para eles, valem apenas como algo que serve para gerar indivíduos considerados racialmente puros", diz ela.
A discussão sobre rebatizar prédios, gincanas e revistas científicas repete, em certa medida, o que aconteceu após o fim da Segunda Guerra.
"A associação que existia entre nazismo e eugenia fez vários periódicos que tinham 'eugenia' no nome a modificar isso", diz Charbel El-Hani, coordenador do Laboratório de Ensino, Filosofia e História da Biologia na UFBA (Universidade Federal da Bahia).
O impacto do "racismo científico" do século 19 sobre as origens da biologia moderna não pode ser negligenciado. Grande parte da influência se manifestou na área conhecida como genética de populações e deriva das tentativas de compreender a variação hereditária entre indivíduos.
Se essa variabilidade podia ser medida, e se era possível saber até que ponto ela estava "no sangue", então seria possível, em princípio, conduzir cruzamentos para ter humanos mais inteligentes ou saudáveis, diziam os eugenistas.
"Uma disciplina que hoje é tão importante foi fundada por eugenistas, sua visão de mundo foi moldada por visões raciais e de melhoria, e é inevitável que isso tenha interagido com a forma como o conhecimento é produzido", diz Diogo Meyer, professor do Instituto de Biociências da USP.
Importado da Europa, o ideário influenciou as primeiras gerações de antropólogos, médicos e biólogos brasileiros, das décadas finais do Império até o começo da República, diz Dias. Em parte, o impulso à imigração europeia e à ideia de branqueamento da população veio de pessoas como o zoólogo Hermann von Ihering, fundador do Museu Paulista, que chegou a escrever artigos defendendo extermínio dos indígenas caingangues no interior de São Paulo.
"Até hoje o Instituto Médico Legal da Bahia leva o nome de Nina Rodrigues, uma dessas figuras fundadoras do racismo supostamente científico no Brasil", diz o físico Alan Alves Brito, baiano de nascimento e diretor do Observatório Astronômico da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
"É uma discussão que precisa acontecer no Brasil, não apenas por causa da necessidade de repensar esses nomes do passado como também para reconhecer as contribuições de cientistas e intelectuais negros, que muitas vezes foram apagadas", diz Brito, que é negro e relata dificuldades para fomentar essas discussões entre seus pares, embora a abertura tenha melhorado nos últimos anos.
"É preciso ter em mente que a ciência é uma construção coletiva, e não essa coisa pura, ingênua, ateórica e ahistórica que está na cabeça de muita gente. A ciência não existe fora da sociedade. Cientistas são pessoas, e pessoas muitas vezes são preconceituosas", lembra Brito.
Para Meyer, elementos da cultura científica como prêmios e nomes de prédios estão associados à credibilidade. Premiar alguém com uma láurea que leva o nome de um eugenista traz uma carga indesejável e pode minar a confiança da sociedade. Ao mesmo tempo, também há problemas em passar a impressão de que a reputação de cientistas oscila ao sabor de guerras culturais.
"Acho que não há nada mais didático do que ver que um cientista brilhante pode ter ideias imensamente equivocadas e danosas. Pensando assim, o nome de um prêmio é a ponta do iceberg. O mais importante é entender que há figuras como o Fisher, complexas, com ideias geniais convivendo com pensamento eugênico."
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