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Analisando filmes, animações e arte queer, livro da Cepe reflete sobre fracasso

Publicado em: 01/04/2020 13:41 | Atualizado em: 29/12/2020 22:40

Arte feita para contra-capa de A Arte Queer do Fracasso. (Foto: Ramonn Vieitez/Divulgação)
Arte feita para contra-capa de A Arte Queer do Fracasso. (Foto: Ramonn Vieitez/Divulgação)


Em Pequena Miss Sunshine, premiado filme de 2006, a pré-adolescente Olive viaja com a família desajustada numa kombi para participar de um concurso de beleza infantil na Califórnia. Durante todo o longa-metragem, o espectador questiona se aquela garota comum, de óculos “fundo de garrafa” e aparelho dentário é apta ao prêmio. Em cena catártica, ela faz uma apresentação do clássico Super freak, de Rick James, destoando do padrão intimidador da competição. Olive fracassa, mas de uma forma que a livra de uma realidade problemática, composta por meninas precocemente adultas e sexualizadas. Um fracasso profícuo, que serve de elo para estancar algumas feridas do seio familiar. 

A análise acima foi feita pelo norte-americano Jack Halberstam, professor do Instituto de Pesquisa sobre Mulheres, Gênero e Sexualidade na Universidade de Columbia, em Nova York, ao refletir sobre a complexidade do ato de fracassar. No capitalismo, o fracasso é nitidamente negativo. O sistema precisa elencar vencedores e perdedores o tempo todo para se legitimar. Mas em meio a sentimentos angustiantes, o fracasso também provoca "furos na positividade tóxica da vida contemporânea". Esse tipo de inquirição deu origem ao livro A arte queer do fracasso, lançamento do Suplemento Pernambuco, selo da Cepe Editora. É a primeira obra do autor traduzida para o português - a publicação original foi nos EUA, em 2011. O prefácio ficou por conta de Denilson Lopes, escritor e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A edição física está disponível na loja virtual da Cepe (www.cepe.com.br/lojacepe), ao preço de R$ 45.

Pequena Miss Sunshine é só um exemplo das várias análises de Halberstam, que é um homem transgênero, sobre produtos midiáticos massivos. Ele discorre a respeito de animações infantis como Bob Esponja (1999), A fuga das galinhas (2000) e Procurando Nemo (2003) sob uma ótica afinada própria de estudos de comunicação, utilizando de termos como baixa teoria (adaptado de Stuart Hall) e cultura híbrida (apontada por Néstor Garcia Canclini para problematizar limites e hierarquias entre as culturas erudita, popular e massiva). Ao mesmo tempo, passeia por pensadores canônicos como Sigmund Freud e Michel Foucault, explora performances de vanguarda e, é claro, a arte queer. De forma ensaística, problematiza as compreensões convencionais do que é sucesso e questiona anseios de uma sociedade contemporânea mergulhada crises de diferentes naturezas.

Jack Halberstam na Universidade de Columbia. (Foto: Vincent Tullo/Divulgação)
Jack Halberstam na Universidade de Columbia. (Foto: Vincent Tullo/Divulgação)


"Defendo que sucesso, em uma sociedade heteronormativa e capitalista, equipara-se facilmente a formas específicas de maturidade reprodutiva combinada com acúmulo de riqueza. Mas essas medidas de sucesso recentemente passaram a sofrer sérias pressões com o colapso dos mercados financeiros, por um lado, e com o épico aumento das taxas de divórcio, por outro. Se os anos de expansão e colapso do final do século 20 e início do 21 nos ensinaram alguma coisa, deveríamos ao menos ter uma crítica saudável dos modelos estáticos de sucesso e fracasso", argumenta Jack, que também é autor de livros com projeção nos estudos queer e de gênero, como Gaga feminism (Beacon Press, 2012).

Schneider Carpeggiani, editor do Suplemento Pernambuco, ressalta que a obra supre duas deficiências do mercado editorial brasileiro: a falta de livros de ensaios e a pouca bibliografia de estudos do universo queer. "Esse livro é o panorama cultural de uma sociedade que criminaliza os corpos que não se adequam à sua visão única de sucesso, que é heteronormativa", explica. "Há uma parte no livro muito ilustrativa em que o autor trata do romance não- -queer Trainspotting, de Irvine Welsh, que virou um filme homônimo super conhecido. Tanto no filme, quanto no livro há a questão das escolhas que fazem de uma vida, no contexto da nossa sociedade, como algo de sucesso: ter um carro, uma carreira, uma família, uma TV gigante na sala. Mas o que acontece quando as pessoas preferem outra coisa? Ou melhor, quando seu corpo exige que sejam feitas outras escolhas? O que a cultura e a sociedade dizem sobre isso?".

Ao se colocar como um livro sobre fracasso, também aborda os impactos individuais das próprias crises do capitalismo. Por isso, chega em um momento de zeitgeist (espírito da época) diante das crises econômicas globais e do colapso ocasionado pelo novo coronavírus. “Nesses primeiros meses de 2020 não dá para você alcançar nada, você tem de parar. Parar é justamente o contrário da lógica capitalista”, ref lete Carpeggiani. "Em meio a essa crise, é hora de pensarmos na importância de estarmos errados, do esquecimento, da lógica de não aprender nada, de fazer como a poeta Elizabeth Bishop, citada no livro de Jack, nos fala num poema: ‘É hora de aprender a arte de perder’."

Confira a capa:

 (Foto: Cepe/Divulgacão)
Foto: Cepe/Divulgacão
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