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Por crianças mais felizes

Publicado em: 12/10/2019 11:49 | Atualizado em: 12/10/2019 14:06

Foto: Tarciso Augusto / Esp. DP
 
Para o mundo, “Thallyson não existe”. Cansou de ouvir esta sentença. É como um eco que acompanha a existência dele. Um erro gráfico no nome da mãe de Thallyson Rogério da Silva Lima ao dar entrada da maternidade impediu o registro formal do nascimento do menino em um cartório. Sete anos de peregrinação da mãe e nada até então. E, sem registro, não há matrícula em uma unidade de ensino. Foi o que sempre disseram as autoridades escolares à família. “Oxe, ele chora quando vê os outros alunos indo à escola”, diz a avó, dona Maria do Carmo Lima. Taciana do Carmo Lima, mãe do menino e de outras duas crianças – Thayane Nicole (6 anos) e Thayla Ariele (2 anos), por último entrou com uma ação na Justiça, contratou uma advogada para acompanhar o processo, mas continua sem resultado. E teme por mais um ano letivo perdido para Thallyson. “É muito triste. Ele não existe para o mundo”, reclama Taciana, que garante o sustento fazendo manicure e faxinas domésticas. “Aqui na comunidade, só meu filho não estuda”, diz. Chegou a pagar R$ 150,00 por mês para aulas numa escola particular. Pesou no orçamento. Decidiu cancelar a matrícula.

No improviso, os amigos do beco onde vive, na comunidade do Pocotó, à beira do canal de Boa Viagem e do Shopping Recife, ajudam Thallyson a decorar a ordem alfabética. A junção silábica, no entanto, é passo distante para ele. “Eu queria muito ir para a escola. É meu sonho”, conta o menino. Ter acesso à educação é o presente da vida real mais esperado por Thallyson. O pacote do desejo não carece de laçarote e é feito de direitos básicos. Ser criança no Brasil e, em especial no Nordeste, não é brincadeira. Estudo da Fundação Abrinq (SP), intitulado O Cenário da Infância e Adolescência no Brasil 2019, revela “as precárias condições de vida dessa parcela da população”, imersa em “um ciclo vicioso do qual dificilmente a criança pobre consegue escapar”. Um total de 31 indicadores sociais foram usados. A Abrinq se destaca no Brasil há 29 anos na defesa dos direitos da criança e do adolescente. O Nordeste de Thallyson se revela em extremos de taxas negativas de pobreza, educação e saúde. Fala-se de um território com 14,3 milhões de crianças e adolescentes com idade entre zero e 19 anos na área urbana e 6,1 milhões da área rural. Da região com mais crianças e adolescentes com idade entre seis e 14 anos fora da escola – são 78.433.
 
Foto: Tarciso Augusto / Esp. DP
 
 
O mesmo Nordeste que está no topo das regiões com estabelecimento sem quadras esportivas para lazer das crianças (78,6%). A falta de infraestrutura e lazer é algo que os meninos que residem próximos ao Canal do Arruda, Zona Norte do Recife, também se ressentem. Enquanto jogavam uma partida de peão, quarta-feira passada, comemoravam aos gritos o anúncio de um alto-falante que informava a instalação de um pula-pula ali perto. Quanto aos gargalos da educação infantil: no Nordeste, a taxa de cobertura líquida em creches é baixa, de 19,4% (o Sudeste é de 35,5%). Como parte deste recorte do estudo está Alice Maria, de 3 anos, moradora da comunidade pobre do Pilar, Centro do Recife. “Sabemos que uma criança que frequenta creches tem três vezes mais chance de chegar a uma universidade”, enfatiza o Gerente Executivo da Abrinq, Victor Alcântara. Ele comemora avanços, mas torce por mais políticas públicas. O estudo da Abrinq mostra ainda que, na região, 24,5% dos alunos do ensino sofrem com a distorção de idade e série (no Brasil é de 18,1%). No ensino médio, é pior: 36,2%. Pedro Henrique, de 11 anos, confirma. Isolados, estes indicadores já seriam inquietantes quando se pensa em se comemorar o Dia das Crianças. Mas, somados à pobreza perene da região, qualquer número (e parte dele na vida real) da infância é potencializado. 
 
Foto: Tarciso Augusto / Esp. DP
 
 
Matheus, da comunidade do Pilar, precisa driblar a ameaça de ratos para brincar em casa à noite Para brincar no chão de cimento batido dentro de casa, com brinquedos escassos, Matheus Gabriel Ribeiro e seus irmãos Maísa e Miguel já sabem: precisam antes esperar a jovem mãe Mayara Maria da Silva, de 24 anos, concluir a rotina diária de lavar, jogando baldes de água e alvejante, a área interna do barraco deles - ali na comunidade do Pilar, Centro do Recife. Todos têm menos de 6 anos. À noite, ficam atentos. É quando os ratos entram e correm de um lado para o outro, escondendo-se entre móveis improvisados e caixas. Por vezes, “as crianças choram quando veem um deles”, conta a mãe; noutras, correm “pedindo colo ou pulam na cama” para se protegerem.

Matheus é um menino esforçado, segundo a mãe. Pega qualquer pedaço de papel para mostrar sua habilidade na escrita e já aprendeu também a lidar com as dificuldades. Com a falta de uma televisão para entretê-los, saneamento básico, água encanada e ausência de comida na geladeira. “Não vou mentir para a senhora. Eles choram de fome. Tem dia que não tenho leite, não tenho um biscoito para dar”, confessa, baixando a voz, com o constrangimento de quem convive com privações.

“É muito difícil criar uma criança no mundo de hoje. Não tenho onde deixar os meninos, não consigo trabalho e conto com a ajuda desse pessoal que entrega comida na rua”, diz Mayara. Os meninos engrossam o contingente de crianças e adolescentes na extrema pobreza no Nordeste. Mas, ainda sem entender a condição em que estão imersos, sugestionados pela promoção da data festiva do Dia das Crianças, também cobram um agrado. Matheus só fala em instalar uma piscina inf lável defronte ao barraco. “Já avisei que não posso. Não tenho nem de onde tirar o dinheiro”, desabafa Mayara. O Nordeste tem 8,8 milhões de crianças de zero a 14 anos em condição domiciliar de baixa renda, na pobreza ou na extrema pobreza. No Brasil, são 20 milhões, 47,8%. O Cenário da Infância e Adolescência no Brasil 2019, da Fundação Abrinq, com base em indicadores oficiais do governo, mostra que Matheus vive na região que concentra mais vulneráveis desta população, tanto em números absolutos quanto em números percentuais. Somadas as crianças e adolescentes que vivem com renda domiciliar per capita mensal inferior a meio salário mínimo (classificados nas estatísticas como pobres) ou os que vivem com renda domiciliar per capita mensal inferior ou igual a um quarto do salário mínimo (os extremamente pobres), chega-se a 69,7% do total geral. Os extremamentes pobres são maioria - 4,9 milhões de crianças e adolescentes.Um dado resvala em outro. Quando se trata do percentual de população residente não atendida pela rede de coleta de esgoto, o Nordeste se destaca negativamente com 62,1%, frente a 42% no Brasil. São resultados da Abrinq, a partir de dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento Básico e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

A pobreza, por exemplo, tem forte inf luência na condição nutricional das crianças. Se, no Nordeste, a pobreza tem taxas altas, nota-se quadro semelhante quando se avalia a nutrição. Na região, o número de crianças com idade até cinco anos com altura muito baixa ou baixa para idade é o maior do Brasil. São 244.223. Considerando o peso elevado, idem - Nordeste também no topo. Em 2017, ano que serviu de estudo para o relatório da Abrinq neste caso, mostra que eram 155.219 crianças com peso elevado para a idade. Mais do que um instrumento de consulta, o estudo, diz o hoje vice- -presidente da Abrinq, Carlos Tilkian, o Cenário da Infância e Adolescência 2019 “pode servir como instrumento para a incidência política pela garantia e promoção de direitos da infância e da adolescência”. Já Victor Alcântara, Gerente Executivo da Abrinq, destaca o quanto se deve trabalhar em favor de “políticas públicas que melhorem as desigualdades”. Ele aproveita para citar como exemplo positivo o projeto Mãe Coruja, do Governo de Pernambuco, que ajudou na redução da mortalidade no estado. “O bom caminho é achar um foco e otimizar o recurso. E Pernambuco tem um bom exemplo disso”. Mortalidade, diz Alcântara, é um dos fatores que mais preocupa gestores e defensores da criança e adolescente no Brasil. 

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