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Observatório Econômico E o Artigo 196?

Por: Fernando Dias - Diario de Pernambuco

Publicado em: 06/08/2018 10:10 Atualizado em: 06/08/2018 10:17

Ao longo das últimas semanas presenciamos um embate entre a ANS e as associações de defesa dos consumidores acerca da cobrança de coparticipação de até 40% dos usuários de planos de saúde, inicialmente aceita e posteriormente retirada pela ANS. Por trás da ação da ANS estavam os planos e as seguradoras de saúde, preocupadas com o avanço dos custos e, é claro, a manutenção da rentabilidade de seus negócios.

Em um mercado onde as principais operadoras privadas têm carteiras com milhões de clientes, e onde os lucros somam centenas de milhões de reais, é previsível que as mesmas tentem preservar suas margens enquanto lidam com problemas típicos da gestão de seguro saúde independente da modalidade contratada. Neste cenário não custa indagar o que aconteceu com artigo 196 da Constituição Federal, um dos mais carregados de boas intenções de nossa carta magna.

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

De boas intenções o inferno está cheio, diz o dito popular. Podemos completar lembrando que não basta boa vontade, é preciso ter recursos para entregar o prometido, e infelizmente o texto constitucional é hoje uma promessa que dificilmente será cumprida em sua íntegra. O texto é simplesmente amplo demais e genérico demais para abarcar qualquer tipo de demanda, e dada a natureza do setor de saúde isto se torna uma fonte perene de incerteza tanto para o setor público quanto para o privado.

Do ponto de vista do setor público as expressões “universal” e “igualitário” em um segmento que engloba melhorias contínuas, e de alto custo, leva a necessidade de um orçamento praticamente ilimitado. Não é à toa que por mais que o SUS cresça em gastos (125 bilhões em 2017) a carência de recursos só aumenta, pois mesmo que o número de pessoas que recorra ao sistema seja estável o número de procedimentos necessários cresce.

Por que isto ocorre? É da natureza da ciência médica. Na grande maioria dos casos o diagnóstico é baseado em uma hipótese, e para comprovar hipótese se precisa dos dados que são gerados pelos exames. Quanto mais dados (exames), melhor (e mais caro) fica o diagnóstico. Além disso a contínua incorporação de tecnologia aos procedimentos tem um custo a ser pago, e ele não é barato. E por que isto é um problema para o setor público? Porque todos deveriam ter acesso universal e igualitário segundo o Art. 196 da CF.

E os operadores privados? Eles lidam com problemas diferentes, mas também são afetados pelo Art. 196. Como uma modalidade de seguro a assistência privada a saúde lida, a priori, com a necessidade de compor uma carteira viável para bancar os procedimentos dos clientes que utilizam o serviço com a receita obtida entre os que usam e os que não usam. Tudo se trata de gerenciamento de risco, você compra porque não sabe se vai precisar. A viabilidade do serviço está em equilibrar os diferentes grupos de usuário.

O que ocorre se os usuários entendem que compram um passe livre para fazer exames e procedimentos indiscriminadamente? O sistema vai à falência. Como se gerencia isto? Criando regras de contenção e segmentando os usuários por tipo, de tal sorte que deve haver diferentes planos para diferentes perfis e todos com regras mais ou menos rígidas para uso a depender do preço.

No entanto, a meta de acesso universal e igualitário que solapa o SUS acaba por permear a discussão sobre como regular os serviços privados, e estes por sua vez reagem tentando capturar a posição dos seus reguladores e, invertendo o sentido, impor regras que apenas beneficiem as operadoras. No meio do tiroteio entre os agentes públicos mirando em objetivos inalcançáveis e os agentes privados focando em suas carteiras, o consumidor é fulminado por rajadas de aumentos e bombardeado por negativas de procedimento. O bom senso passa longe.
 
* Professor do Departamento de Economia da UFPE