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ESPECIAL FRANCISCO BRENNAND

O adeus a um escultor de sonhos

Publicado em: 20/12/2019 12:33 | Atualizado em: 20/12/2019 13:32

 (Foto: Paulo Paiva/DP)
Foto: Paulo Paiva/DP

Cada grande engenho de açúcar do Brasil colonial mantinha um forno para a confecção de louças de barro. Os utensílios, que acompanham a história da humanidade, eram a paixão de Ricardo de Almeida Brennand, descendente de Edward Brennand - o inglês que iniciou a linhagem da família no Brasil ao atuar com ferrovias no litoral do Nordeste. Mesmo tendo herdado um engenho de açúcar na região da Várzea, Ricardo optou por abrir a primeira fábrica de cerâmica da família, em 1917. Uma década depois, naquelas mesmas terras de aspectos feudais, nascia Francisco de Paula Coimbra de Almeida Brennand.

A Cerâmica São João, próxima das margens do Rio Capibaribe, era quase uma olaria. Foi se industrializando aos poucos, criando porcelanas e azulejos comercializados para residências de famílias abastadas. Foi dentro desse universo cerâmico que Francisco cresceu, sempre em contato com esse material de natureza inorgânica que ganha tom ao ser submetido a altas temperaturas, tão ardentes quanto a própria inventividade que o artista iria adquirir dentro de alguns anos.

Quando a fábrica já tinha entrado em desuso, em 1971, foi lá que Francisco montou seu ateliê. Ali, fincou o seu “centro do mundo”. A Oficina Brennand ganhou uma áurea mágica, que já começa na estrada de terra que dá acesso ao conjunto arquitetônico. É como se deslocar de uma capital urbana e tropical para um universo particular de murais, painéis, pinturas, desenhos e objetos cerâmicos. São totens que exaltam o fantástico e o mitológico, com elementos arcaizantes e uma singular carga sexual.

Uma urna funerária de cerâmica confeccionada pelo próprio Francisco já estava pronta desde o início desta década e guardada nesse misto de ateliê, museu e santuário. Nela, serão depositadas as cinzas do corpo de um dos maiores artistas plásticos já nascidos no Brasil. Francisco Brennand faleceu ontem, aos 92 anos, por infecção respiratória. Ele estava internado no Real Hospital Português, no Recife, e teve velório realizado na Capela Imaculada Conceição, em sua Oficina. A cerimônia de cremação será hoje, às 11h, no Cemitério Morada da Paz, em Paulista.

Brennand começou a trabalhar na Cerâmica São João em 1942, quando recebeu orientação do escultor Abelardo da Hora, então funcionário do local. No ano seguinte, conheceu Ariano Suassuna, seu colega de classe no antigo Colégio Oswaldo Cruz. Juntos, faziam um jornal literário - Ariano escrevia, Francisco ilustrava. Entre 1945 e 1947, estudou com o pintor Murillo La Greca. Começou sua trajetória, inclusive, com a pintura, pois considerava a cerâmica uma prática utilitária.

No final dos anos 1940, viajou para a França, incentivado pelo pintor Cícero Dias. Foi um período essencial na sua trajetória, pois frequentou cursos de André Lhote e Fernand Lége, conheceu obras de Pablo Picasso e Joán Miró. Na década seguinte, em viagem à Espanha, descobriu a arte de Antoni Gaudí, célebre arquiteto espanhol e personagem do modernismo catalão. Brennand se aprofundou nas técnicas da cerâmica ainda na Europa, sobretudo em Perúgia, na Itália. Chegou a fazer parte do movimento armorial, capitaneado pelo amigo Suassuna e que procurava criar arte erudita através de elementos da cultura popular. Incomodava-se, porém, quando caracterizado de “armorial”.

Francisco costumava afirmar que não era milionário, apenas que sobrevivia do próprio trabalho na Oficina, onde passou seus últimos dias. Documentou 60 anos de trajetória em diários, publicados pela Cepe, em 2016.

O legado que Francisco Brennand deixa é imensurável. Seu universo criativo, personagens, totens mitológicos ou sexuais estão incrustados eternamente na própria paisagem do Recife, como no Parque das Esculturas do Marco Zero da cidade. E, ainda mais forte do que isso, estará para sempre no imaginário coletivo como um artista-alquimista de barbas brancas que, isolado em seu recanto no meio da Mata Atlântica, usou a cerâmica para moldar uma espécie de cânone da cultura brasileira, e que agora entra para a epistemologia da arte visual pernambucana.
Linha do tempo
 
11/06/1927
Nasce, nas terras do antigo Engenho São João, no bairro da Várzea, Zona Oeste do Recife. Filho de Ricardo de Almeida Brennand (descendente do inglês Edward Brennand) e de Olímpia Padilha Nunes Coimbra.

1937
Vai estudar no colégio interno São Vicente de Paula, no município fluminense de Petrópolis, retornando ao Recife dois anos depois.

1942
Começa a trabalhar na Cerâmica São João, fundada por seu pai em 1917, onde recebe orientação de Abelardo da Hora.

1943
Ingressa no Colégio Oswaldo Cruz, onde conheceu Deborah de Moura Vasconcelos, sua primeira esposa, e ficou amigo de Ariano Suassuna, colega de classe.

1945
Começa a receber orientação do pintor e restaurador Álvaro Amorim, um dos fundadores da Escola de Belas Artes de Pernambuco, e do pintor Murillo La Greca.

1947
Recebe o primeiro prêmio de pintura do Salão de Arte do Museu do Estado de Pernambuco, com a obra Segunda visão da terra, uma paisagem inspirada nas terras do Engenho São João.

1948
Recebe prêmio e menção honrosa por seu autorretrato com Cardeal inquisidor, inspirado em Dom Fernando Nino de Guevara. Casa com Deborah e viaja para Paris, convencido pelo pintor Cícero Dias.

1950
Passa a residir em Barcelona, na Espanha, onde descobre a obra de Antonio Gaudí, famoso arquiteto espanhol e figura de ponta do Modernismo catalão.

1954
Inaugura seu primeiro grande painel, na fachada da fábrica de azulejos da família Brennand, no Recife.

1958
Inaugura o mural cerâmico para a entrada do Aeroporto Internacional dos Guararapes, no Recife.

1961
Conclui o mural Batalha dos Guararapes, para uma agência bancária do Recife, e o mural Anchieta para o ginásio Itanhaém, em São Paulo.
 
1971
Começa a reconstruir a antiga fábrica de telhas e tijolos da família, fechada em 1945, que viria a se tornar a Oficina Brennand.

1998
É realizada a retrospectiva Brennand: Esculturas 1974-1998, na Pinacoteca do Estado (Pesp), em São Paulo.
 
2000
É inaugurado o Parque de Esculturas Francisco Brennand, integrando o projeto Eu vi o mundo... Ele começava no Recife, que comemorou os 500 anos do descobrimento do Brasil.

2012
Participa das gravações do documentário homônimo de Mariana Brennand Fortes, sua sobrinha. O filme narra sua trajetória a partir do diário escrito pelo artista.

2016
Os diários do artista, escritos ao longo de 60 anos, são lançados em uma série de livros da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), sob o título Diário de Francisco Brennand - O nome do livro.

2017
É agraciado com a Medalha do Mérito Guararapes - Grã Cruz, a mais alta honraria do Estado de Pernambuco.

2019
A Oficina Brennand passa a se chamar Instituto Oficina Cerâmica Francisco Brennand, entidade sem fins lucrativos que tem como premissa maior preservar o legado artístico e conjunto das obras.

19/12/2019
Morre, diagnosticado com um quadro grave de pneumonia, aos 92 anos.


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