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Aplaudido em Cannes, filme pernambucano Bacurau expõe um Brasil dividido e armado

Emocionado, Kleber Mendonça disse achar o filme importante para os brasileiros, por ser um longa também sobre educação

O diretor Kleber Mendonça Filho e a produtora francesa Emilie Lesclaux chegam para a exibição de Bacurau. Foto: Alberto Pizzoli/AFP

A produção, que o pernambucano dirigiu em parceria com o conterrâneo Juliano Dornelles, estreou no Festival de Cannes ontem. Desta vez, no entanto, sem protesto no tapete vermelho, como ocorreu três anos atrás com o ruidoso ato anti-impeachment que precedeu a estreia de Aquarius no evento. A atriz Sonia Braga, que havia marcado presença naquele ano e que também está no elenco da nova produção, tampouco compareceu. Teve compromissos em Nova York.

O novo longa representa uma inflexão na obra dos dois diretores, que até então ambientavam suas tramas no Recife e voltavam suas lentes para as distorções da vida urbana brasileira. Agora deslocam a ação para uma cidadezinha fictícia no sertão e deixam de lado o drama social para abraçar de vez as convenções do chamado cinema de gênero.

Bacurau, nome de um pássaro noturno e dos ônibus do último horário na capital pernambucana, é o vilarejo isolado onde a trama se passa. Logo após a morte de Carmelita (Lia de Itamaracá), nonagenária que é uma espécie de matriarca local, os habitantes do povoado, entre eles a médica Domingas (Sonia Braga), se dão conta de que o lugar sumiu dos mapas. É mais um problema, que se soma ao desabastecimento crônico e ao descaso de um prefeito corrupto.

Elenco no tapete vermelho. Foto: Valery Hache/AFP

De tom mais cômico que os longas pregressos de Kleber, Bacurau é também mais hermético que O som ao redor (2012) e Aquarius (2016). O cineasta parece ter escolhido trocar um cinema repleto de mensagens diretas, muitas vezes expressas sem rodeios na boca dos personagens dos seus títulos anteriores, por um outro com referências mais alegóricas.

Ainda assim, é um filme de tese. A cidade sertaneja onde tudo se passa representa um Brasil tradicional, com aparente igualdade racial e ligado às suas raízes, que corre o risco de sucumbir diante do imperialismo tanto dos que falam outra língua quanto dos que vêm do Sul do país, entreguistas e presunçosos.

O cangaço, evocado na figura de Lunga e nas imagens de cabeças decepadas ao pé da igreja, surge como revide cultural de um povo acossado e historicamente menosprezado. A dúvida é como signos tão brasileiros vão ecoar em plateias estrangeiras.

FILME DEIXOU IMPRENSA ATÔNICA
Um longa que desafia todas as convenções de tensão dos thrillers já feitos na América Latina. Bacurau troca as reflexões sobre gentrificação de O som ao redor e Aquarius por uma linha de suspense arrebatadora, que deixou a imprensa atônita. “O filme tem uma atmosfera fascinante e joga com a dinâmica dos filmes de gênero sem ser óbvio”, elogiou o crítico espanhol Nando Salva Grimat, ao fim da sessão para os jornalistas. Risos nervosos, suspiros de assombro, torcidas apaixonadas e um aplauso num momento de virada marcaram a projeção para a imprensa.

O desempenho de Silvero Pereira, como um dos habitantes de maior fúria no local, infla a tela com urros, fúria e sangue, numa narrativa com ecos de Mad Max e de Walter Hill (Warriors - Os selvagens da noite). “O filme se passa em Pernambuco, mas acabamos achando a locação, sem a gente perceber, no Rio Grande do Norte, na fronteira com a Paraíba, no sertão do Seridó. Foi uma viagem com Juliano instrutiva não só para informar a gente sobre o visual e o clima do sertão, como uma sociedade, mas também por se encaixar com nossa bagagem do sertão através do fato de a gente ser do Nordeste e ter tantos amigos que vieram do sertão. O sertão existe forte em quem é nordestino. Temos uma estrutura clássica de uma única rua”, diz Kleber.

Diretores e produtora Emilie Lesclaux. Foto: Victor Jucá/Divulgação

Em Bacurau, a frase não é dita, mas vivida, num levante em prol da resistência contra a opressão, que traduz uma série de metáforas políticas. Não por acaso, a trilha sonora de Sérgio Ricardo para o cult A hora e a vez de Augusto Matraga (1965), de Roberto Santos, considerada um hino de protesto, embala a luta de um povoado contra predadores do exterior, que matam por prazer.

“Cannes é um festival único, que nos permite passar dois dias seguidos ininterruptamente falando com a imprensa internacional sobre o filme que fizemos, com visibilidade para o mundo inteiro”, disse Dornelles que, com Kleber, levou para os créditos do longa uma frase referindo-se ao número de empregos que a produção gerou, em prol da economia da cultura.

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