"Ativo, nobre, radiante da coragem invencível e do sublime heroísmo de que já dera tantos exemplos. O índio se apresentava só em face de duzentos inimigos fortes e sequiosos de vingança”. O trecho de O guarani (1857), clássico literário de José de Alencar na primeira fase do romantismo brasileiro, serve como ponto de partida para analisar uma certa “idealização” do índio na cultura nacional - no caso, de um índio “herói”. Historicamente, a figura indígena tem sido constituída como o “lugar do outro” em produções artísticas e de entretenimento, com certo aspecto monotemático e que acaba expondo perspectivas limitadas da sociedade.
Para superar esse obstáculo de alteridade imagética, mais especificamente no ramo audiovisual, cineastas indígenas se mobilizam para contar suas próprias narrativas em curtas e longas-metragens. A prática do “cinema indígena” é alvo de pesquisas no mundo acadêmico, tem presença em festivais de cinema independente e conta com alguns adeptos no interior de Pernambuco, com destaque para o Ororubá Filmes, de Pesqueira, e o Coletivo Fulni-ô de Cinema, de Águas Belas, ambas cidades do Agreste pernambucano.
Graciela Guarani, 33 anos, reside em Jatobá, no Sertão de Itaparica, e está à frente do coletivo Olhar da Alma Filmes. Ela formou o grupo em 2014 ao lado do companheiro Alexandre Pankararu, natural de Pesqueira, um dos fundadores da plataforma Índios Online e que atualmente lidera o Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília. “Precisamos fazer uma audiovisual 100% indígena em vez de indigenista, expressão usada quando pessoas não-indígenas comandam instituições que falam por nós”, explica.
“Muitas produções criam uma simbologia em volta do imaginário indígena que às vezes não condiz com o que vivemos. Exploram muito o lado ‘exótico’, como se isso resumisse toda a nossa existência, repercutindo uma espécie de opressão. Claro que temos nossos rituais, nossas tradições, mas não vivemos só disso. Estudamos, temos toda uma parte que não aparece no cinema ‘para gringo ver’, enquanto existe toda uma batalha diária dessa população no Brasil”, argumenta.
Graciele nasceu na aldeia de Jaguapiru, no Mato Grosso do Sul, onde vive o povo guarani kaiowá. Na adolescência, foi convidada para participar de um movimento de juventude indígena apoiado por uma ONG paulista. Nele, promoveu atividades de fotografia e oficinas de documentário a jovens do local, além de participar da elaboração de um jornal comunitário. Em 2009, mudou-se para a Bahia e integrou uma rede de comunicação indígena maior, onde conheceu Alexandre, pernambucano. Juntos, decidiram “caminhar com as próprias pernas” e criar o Olhar da Alma. A mudança para Pernambuco foi devido ao fomento do poder público estadual, através do Funcultura.
Com editais, lançaram curtas como Terra nua (2014) e Mão de barro (2016), que passaram por festivais como o de Triunfo e a Bienal de Cinema Indígena de SP. O trabalho mais recente é Tempo circular (2018), que aborda o tempo na visão indígena na Nação Pankaru, em Pesqueira. “Um tempo não linear, que escuta o passado estando no presente e pensando no futuro. Em que os três estágios de tempo se comunicam com sabedoria, respeitando o ciclo natural das coisas”, diz a produtora, que reúne canções, dizeres da vida, com apelo de ancestralidade e paz. O recente curta Mba’eicha Nhande Rekova’erã (Mensageiro do futuro) faz um breve recorte de algumas questões pertinentes e urgentes na reserva indígena de Dourados-MS, uma das mais populosas do país.
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“Queria muito sobreviver apenas do audiovisual retratando a diversidade da questão indígena, mas várias leis estão sendo desmanteladas. Caminhamos para um cenário muito escuro e a campanha colaborativa foi a saída”, diz Graciela. O momento intricado para as políticas culturais esbarra nas polêmicas decisões de demarcações de territórios indígenas no país pelo governo federal. “O audiovisual é muito importante para difundir informações de dentro da comunidade para fora, como uma ferramenta. É urgente.”
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