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Indústria do cinema busca medidas práticas para lutar contra assédio

Medidas legais estão entre as iniciativas para combater a prática

Publicado em: 08/03/2018 18:41 | Atualizado em: 08/03/2018 18:32

No palco do Oscar, Frances McDormand pediu apoio pela política do Inclusion Rider. Foto: Kevin Winter/Divulgação

Foi quase impossível ignorar. O clamor de uma indústria cansada dos mandos e desmandos de poderosos homens finalmente teve sua cota, resultando no transbordamento de indignações. A onda de denúncias relacionadas a assédio sexual que lavou Hollywood e sua poderosa indústria de entretenimento, acompanhado do descontentamento em relação à ínfima diversidade do setor – que tem apenas 16% de mulheres em seus filmes (de acordo com estudo da Universidade da Califórnia), parece ter alcançado o ápice. Mas quais foram os resultados dessa crise histórica?


Além dos grandes nomes que caíram - após anos de assédio - como Harvey Weinstein, Kevin Spacey e Louie C.K., ocorreu uma outra mudança: a indústria do entretenimento está buscando formas práticas de manter o assédio longe de suas produções, na prática, de papel passado, contratualmente.

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Diversidade
Essas mudanças vem em duas frentes principais: a busca por maior diversidade e a luta contra o assédio. No primeiro caso, diversas ações políticas práticas estão sendo solidificas, a principal delas: a política dos Inclusion rider. Clamado pela atriz Frances McDormand, após ganhar o prêmio de melhor atriz pelo filme Três anúncios para um crime no palco do Oscar no último domingo, as duas palavras ganharam o mundo.

Após agradecer por sua estatueta, McDormand afirmou à plateia: “Eu tenho duas palavras para deixar com vocês hoje à noite, senhoras e senhores: inclusion rider”. Tecnicamente, a natureza de ação prática do Inclusion rider busca maior diversidade e é de cunho contratual, ou seja, cabe as negociações que cada ator, ou agência, realiza com os estúdios para a realização de uma produção.

O inclusion rider nada mais é do que uma ação que obriga uma série, ou filme, ou qualquer outro projeto a ter 50% de seu elenco, ou equipe técnica, baseada em diversidade de gênero, ou raça. A presença de espírito de Frances cabe ao momento em que ela proferiu a frase: em uma sala com as maiores estrelas da indústria cinematográfica do mundo.

A ideia do inclusion rider saiu da professora da Universidade da Califórnia, Stacy L. Smith, que defende que a diversidade alcançada pela cláusula pode significar maior representatividade e igualdade. "Se grandes atores trabalhando nos 25 maiores filmes de 2013 tivessem aplicado essa mudança em seus contratos, a proporção de mulheres teria pulado de 16% para 41%. Imagina as possibilidades se alguns atores usassem seus poderes em prol das mulheres e garotas", afirmou a professora à revista The Hollywood reporter.

Políticas antiassédio
A grande resposta para a crise de assédio está sendo construída sobre bases metódicas e legais. Isso significa: não se basear somente em discursos, mas registrar o problema e, principalmente, sua solução. O primeiro grande passo neste sentido foi dado pela PGA (uma espécie de sindicato dos produtores norte-americanos).

No começo do ano, a instituição criou um "guia político contra assédio sexual" nas produções do país. A medida tem como objetivo lidar com o problema em uma linha prática, ensinando o que  pode ser classificado como assédio, como as vítimas podem reagir e quais são seus direitos legais.

Em entrevista à revista Vanity fair, Gary Lucchesi e Lori McCreary, presidentes do PGA, afirmaram: "Assédio sexual não pode mais ser tolerado na nossa indústria. Como produtores, nós entregamos liderança fundamental ao criar e manter um ambiente de trabalho construído no respeito mútuo, então é nossa obrigação para mudar a cultura ou erradicar esse abuso".

Confira algumas asserções
O guia deixa claro que não é um instrumento jurídico-legal de combate ao assédio, mas aponta formas de como lidar com o problema. O documento ensina o que é assédio, o que não é, as recomendações para lidar com assédio e um protocolo para vítimas e testemunhas.

• Classifica assédio: “qualquer forma verbal, física, ou visual ação não bem-vinda feita de forma persuasiva e que cria um ambiente de trabalho desconfortável, intimidante, hostil, ou intimidante, de forma a interferir na sua performance”.

• Não classifica assédio: “Um abraço, um beijo no rosto, ou contato físico não necessariamente designam assédio, o que classifica é se o comportamento foi não bem-vindo, ou ofensivo”.

O que fazer em caso de assédio

• "1) Crie e mantenha documentos fazendo notas sobre os assédios vistos ou sofridos, incluindo conversas, datas, horário, local, comportamentos específicos e faça copias desses documentos para ficarem em posse de amigos de confiança fora do trabalho;"

• "2) Se o comportamento não é um crime, e você estiver desconfortável, fale com a pessoa que está lhe ofendendo. Seja claro, especifico e tente comunicar o que está lhe fazendo inconfortável;"

• "3) Reporte incidentes para pessoas designadas na produção, ou ao departamento de recursos humanos e até mesmo a um advogado".

• O primeiro filme a adotar as políticas do PGA foi o longa Mulher-Maravilha 2, que entre outras ações, passará toda a equipe de criação a um treinamento de tal guia e suas diretrizes.
 
Contexto brasileiro 
Em terras brasileiras, em que denúncias de assédio existem — como no caso do ator José Mayer —, as ações práticas relacionadas ao problema ainda estão em seu estágio inicial. O Correio entrou em contato com Cibele Amaral, uma das diretoras do conselho de presidência da Aprocine (Associação de produtores e realizadores de longa-metragem do DF), que explicou que ações deste tipo têm importância e merecem ser discutidas no contexto nacional: “Aprecio o que está acontecendo na indústria norte-americana do entretenimento e creio que seja um bom modelo a copiar. Entender que certas práticas são, na verdade, ruins e agressivas é essencial tanto para quem sofre com elas quanto para quem as pratica”.

Mesmo assim, Cibele admite que as políticas práticas por parte da instituição estão começando a ser debatidas somente agora. “Desde que estou na associação, nunca houve discussão nesse sentido. Esse despertar para políticas de inclusão feminina no audiovisual e práticas anti-assédio é algo novo e essencial. Durante muito tempo, nossa preocupação foi continuar existindo, pois o fomento para o audiovisual aqui no DF era muito pequeno. Agora, estamos num momento melhor, com muito a se conquistar, mas que já nos permite abranger discussões que não sejam apenas de sobrevivência. Essa é uma ótima discussão para se fazer no âmbito da associação”, explica.

O problema da existência de outras crises "prioritárias" também é algo que deve ser considerado de acordo com Pedro Lacerda, presidente da APBA (Associação das Produtoras Brasileiras de Audiovisual — Centro-Oeste). "No Brasil ainda existem dificuldades enormes de produção, nós temos tantos problemas. Claro que esse lado do assédio deve ser pensado, mas acho que em um contexto dentro da justiça".

O Correio também entrou em contato com a Ancine (Agência Nacional do Cinema), que se limitou a informar que tais tipos de ações saem da jurisdição de fomento ao cinema da agência, sendo possivelmente melhor trabalhadas em um contexto de relação entre as empresas de produção e os empregados. Outra instituição procurada foi a Sindcine (Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Cinematográfica), mas a secretária da capital afirmou que somente a sede poderia comentar o assunto, mas o jornal não conseguiu contato com a administração paulista.

Opinião de especialista
Para Cynthia Ciarallo, professora, mestre e doutora de psicologia do Instituto de Ensino Superior de Brasília (Iesb), a produção de políticas antiassédio são importantes, mas não devem ser o único recurso para um problema com raízes culturais. “A iniciativa de produzir um documento deve ser bem recebida, mas a gente não pode cair na ilusão de que isso vai resolver o problema, são norteadores, mas outras ações precisam ser feitas, a gente não está falando só da indústria cinematográfica, a gente está falando de uma sociedade machista. A gente tem de pensar em uma série de estratégias, uma abordagem só não dá conta de uma questão tão complexa assim”.
 
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