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Cultura afro é garantia de vida no Morro da Conceição

Mulher, negra, Conceição dos Prazeres mantém a missão herdada da mãe de cuidar das crianças da comunidade

Publicado em: 25/02/2018 14:01 | Atualizado em: 25/02/2018 22:32

Atividades culturais desenvolvidas no Morro reforçam laços com ancestralidade e driblam ausências do poder público. Foto: Jefte Amorim/Divulgação


Por Leandro Barbosa*

Dava pra ouvir de longe o som da bateria que ecoava do alto do Morro a Conceição, na zona norte do Recife. A música vinha dos batuques do ensaio do Bloco Afro Raízes de Quilombo que atua na comunidade que abriga 10.182 moradores - cerca de 70% deles negros e pardos. Tocavam aproximadamente 30 adolescentes com um pano amarrado na cintura, que substituía o talabarte e mantinha o instrumento junto ao corpo. No meio deles, o Mestre de Bateria gritava: "turum, tum tum", e indicava
erros e acertos estimulando cada um a continuar. E de longe, sentada em uma calçada, Conceição dos Prazeres assistia.

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A mulher, negra, carrega no peito o legado deixado pela mãe Maria da Conceição, de cuidar das crianças do morro. E se empenha nisso, junto com sua irmã Lúcia e seu irmão Ailton, desde 1984. A Família dos
Prazeres foi a pioneira no estado de Pernambuco a trabalhar a educação com o viés da cultura negra e permanece até hoje como símbolo de resistência afro-brasileira, na região.

Atualmente, por meio do Centro de Formação do Educador Popular Maria da Conceição, a família forma inúmeros jovens e adolescentes da comunidade, que acabam se integrando à Banda Raízes de Quilombo ou a Orquestra dos Prazeres, além do bloco de carnaval. Uma estrutura que se renova de geração em geração, explica Conceição. "Cultura negra é assim: você constrói as coisas com os seus filhos. Esses que você pôde ver ensaiando, são filhos de antigos alunos do projeto".

Conceição se orgulha do fato de o Centro oferecer aos adolescentes e jovens saídas para garantir segurança e possibilidades de recursos, que podem surgir entre um evento e outro que as bandas do projeto participam. "Fico feliz da vida quando um desses meninos passa por mim, e fala: 'Obrigado, porque o projeto me ensinou a ser homem de verdade'". 

Para um jovem negro ou pardo da periferia de Pernambuco se tornar um homem, também é contrariar a estatística. Um estudo recente da Secretaria de Desenvolvimento Social de Pernambuco concluiu que no
último ano houve 5.427 homicídios no Estado. De acordo com os dados divulgados pelo órgão, de cada 100 vítimas, 95 eram de cor parda ou negra, com idades acima de 18 anos e moradores de periferia, a maioria do sexo masculino. É importante frisar que os brancos se resumem a apenas 4% desse número.

Como o estado olha para os pobres
Conceição conta que sabiam o que deveriam fazer após um sonho que Lúcia teve onde a casa, deixada pela matriarca da família, estava cheia de crianças. Tinham pra si que este era o desejo da mãe, sempre solícita a toda comunidade. "Ela fazia parto, benzia, rezava, cuidava das crianças doentes. Foi ama de leite de muitas delas e, por ironia do destino, morreu de câncer de mama".

Concordaram entre si que o projeto deveria ser uma creche com foco na primeira infância, de 0 a 6 anos de idade, levando em conta a necessidade das mães solteiras e divorciadas que não tinham na comunidade um espaço seguro que pudessem confiar os seus filhos, enquanto trabalhavam. Inicialmente eram 8 crianças. 5 anos depois já eram 150, e a idade de atendimento já havia se estendido pra 10 anos. Foi observando a convivência das crianças e os preconceitos estabelecidos dentro da comunidade que os irmãos e os voluntários do projeto entenderam que deveriam atuar por meio da cultura. 

Grupo Raízes mantém tradição à base de música. Foto: Jefte Amorim/Divulgaçaão


"O currículo [da Secretária de Educação] era fraco em relação à pobreza e à negritude. A gente pegava o material fornecido pelo estado e inovávamos mudando as histórias de acordo com a realidade das crianças. Se o livro perguntava se elas tinham passado as férias na fazenda do avô, mudávamos a pergunta para: quem foi no maracatu ou na ciranda, nas férias? Crianças pobres não passam férias em fazenda!”. No final de cada semestre, por meio do que haviam estudado, as crianças apresentavam algum tipo de manifestação cultural, "era frevo, maracatu, e virava uma grande festa". E foi daí que surgiu a banda Raízes de Quilombo e um bloco carnavalesco, compostos, em sua maioria, por crianças, adolescentes e jovens atendidos pelo projeto.

Mesmo com o passar dos anos, o Estado ainda escolhe olhar os pobres com a mesma perspectiva da década 1980. Segundo Sylvia Siqueira Campos, Presidente da ONG Mirim Brasil, organização que faz parte dos conselhos Municipal e Estadual de Juventude e que atua em defesa e promoção dos direitos humanos com foco na infância, adolescência e juventude, "enquanto ainda existem jovens na periferia que sequer conhecem o mar, ou pior, que corem risco de morte diariamente, no conselho, com um arranjo dominado pelo PSB, a discussão é se os conselheiros de juventude devem ou não receber transporte pra exercerem suas funções", afirma.

Para Sylvia, que também integra o Conselho Estadual dos Direitos Humanos, há um equívoco na condução das políticas públicas para a juventude. "É um pessoal que vivencia a cidade de maneira muito distanciada do que no mínimo dois terços da população vivencia. Você ter uma discussão com um cara que vem com seu carro com ar condicionado, se uma garota que mora em periferia deve ou não receber vale-transporte é ridículo".

"Vivemos em um estado que não consegue enxergar de maneira negritada onde ele deve colocar o recurso para que haja desenvolvimento. E prefere colocar para os que têm mais, numa falsa ilusão que esses irão gerar empregos para os que têm menos", critica. 

Conceição dos Prazeres: missão de cuidar das crianças e dos jovens a comunidade. Foto: Jefte Amorim/Divulgaçaão


Resistência
A escola que Conceição criou com os irmãos encerrou suas atividades em 2010 por falta de recursos. Mas continuou com os ensaio em uma rua do Morro. E, no improviso, como as faixas de pano no lugar do talabarte ou com fitas Silver Tape emendando um instrumento ou outro, eles tocam. Ainda aguardam a possibilidade de recursos para que possam lançar o primeiro DVD do projeto, que foi gravado com a verba de um edital e a ajuda de amigos. Mas enquanto isso não acontece, eles tocam.

É tocando que eles resistem, cantando letras que enaltecem a cultura negra, relembrando dia a dia a sua história. É assim que Conceição encontra forças para suportar as dores causadas pela artrite, motivo pelo qual ela observava o ensaio sentada na calçada.  Ela conta que deixou o tratamento há quase um ano, "porque quando percebeu já estava ajudando muita gente de novo". Assim foi nesse carnaval, quando se viu ajudando mais de 20 blocos comunitários a se inscreverem no sistema online da Prefeitura do Recife. "Eles dizem que é uma linguagem universal, mas tem gente que não sabe mexer".

Embora tenham se passado mais de 30 anos desde início de tudo, ela segue empenhada falando de uma maneira que todos possam entender, cantando às histórias do seu povo, os chamando a resistência: 

"Nós não queremos tua piedade, não, como nossa missão. 

300 anos de Zumbi não foi uma morte em vão, vamos acabar com essa
falsa abolição.

Cadê você meu amigo? Venha cumprir seu papel.

Venha lutar com a gente, liberdade e direitos não caem do céu 

Viver ilhado em favela não é opção..."

*Leandro Barbosa é jornalista

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