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Zélia Duncan e Jaques Morelembaum gravam clássicos de Milton Nascimento

Invento é uma reinvenção das canções compostas e interpretadas pelo compositor mineiro com doses certas de emoção e sentimento

Voz e violoncello celebram a obra de Bituca. Foto: Leo Aversa/Divulgação


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A ideia surgiu em 2015, quando o executivo e produtor André Midani criou, no Rio, o projeto Inusitado, com shows em que o tom era promover encontros experimentais e, como diz o nome, inusitados. O espetáculo, que chegou a ser apresentado em Inhotim em outubro daquele ano, chegou ao estúdio este ano, pela gravadora Biscoito Fino. A sugestão da parceria com Morelembaum veio nos shows do Prêmio da Música Brasileira, em que a cantora fez releituras de Jobim sob direção artística do violoncelista e arranjador, que já havia trabalhado com Milton nos anos 1970, na turnê de lançamento da obra-prima Minas.

Sabedora do risco que era se aventurar em músicas que tiveram versões clássicas e definitivas, não só com o mineiro, mas com cantoras como Elis e Nana Caymmi, a dupla resolveu trabalhar com intimidade e respeito, sem grandes ousadias nem soluções pirotécnicas. O tom do disco é sóbrio, com aquela beleza das coisas construídas com as doses certas de sentimento e emoção.

Já na primeira faixa, com o cello abrindo os trabalhos com uma pegada praticamente percussiva, O que foi devera (Milton/Brant) funciona quase como mote: "Se muito vale o já feito/ mais vale o que será/ e o que foi feito/ é preciso conhecer/ para melhor prosseguir". Os dois conhecem bem a versão original e cuidaram de interpretar a canção fugindo da força dramática de Elis e achando caminhos próprios. O que será (Chico Buarque), a segunda faixa, fica entre silêncio de igreja e intimidade de pé de ouvido. A épica Ponta de areia (Milton/Brant) surge grave como deve, solene como precisa ser. Na sequência, San Vicente (Milton/Brant) traz uma latinidade contida, mas eficaz. A trilogia de pegada mais política se fecha com Caxangá (Milton/Brant), em que impressiona a atuação quase visual do violoncelo, emoldurando a voz para que o canto de trabalho não perca sua força.

Faixa mais curta do disco, com pouco mais de dois minutos, a folia Calixbento (adaptada por Tavinho Moura) faz bem a ponte entre a religiosidade da rua e da igreja. Aqui, sem dúvida, a ideia original de incluir a percussão de Naná Vasconcelos seria bem-vinda. Já Cravo e canela (Milton/Ronaldo Bastos) soa como música de balé. Poderia estar na trilha original de Maria, Maria, do Grupo Corpo. Para reler Encontros e despedidas (Milton/Brant) e Canção amiga (Milton/Carlos Drummond de Andrade), a voz fica como fala, narrativa, mas com uma dinâmica que ostenta momentos dramáticos, sem sustos. Conforto para quem canta e toca e para o ouvinte.

A belíssima Mistérios (Joyce Moreno/Maurício Maestro) ganha contornos de intimidade, de conversa ao pé de ouvido entre amantes. O clima sugere o álbum Voz e suor, de Nana Caymmi e César Camargo Mariano. Desarmada e despida da sua pujança original, Travessia (Milton/Brant) emociona pela delicadeza da releitura. E o clássico latino Volver a los 17 (Violeta Parra) recebe aqui sua versão mais contida, mas vestida de baile.

Antes de chegar ao final, em um seguro fim de viagem no Cais (Milton/Ronaldo Bastos), com um fade final denunciando, mais uma vez, as intenções de menos ser mais, Zélia e Morelembaum ainda duelam num Beijo partido (Toninho Horta), em que o grito vira sussurro, quase pétala. Ao fim dos 45 minutos, a sensação de acerto de um projeto que, segundo intenção dos dois, ainda deve render mais horas de palco e estúdio.

Uma história de afeto
Como revisitar a obra de Milton Nascimento, homenagear esse mineiro e, ainda assim, se distanciar das versões originais de suas canções, tão enraizadas no nosso imaginário? As respostas estão no disco Invento , em que Zélia Duncan e Jaques Morelenbaum interpretam o cantor e compositor. O trabalho registra o encontro repleto de afetividade de Zélia e Jaques, e seus respectivos instrumentos: a voz e o cello. Daí as composições de Milton e as canções de outros autores, que ficaram emblemáticas em sua interpretação, selecionadas para o repertório, soarem tão familiares e, ao mesmo tempo, tão renovadas. A presença solitária do cello de Jaques e o canto minimalista de Zélia, quase recitando as letras das músicas, causam esse efeito.

Cada um deles é conectado à obra de Bituca à sua maneira. Jaques se recorda de quando acompanhou Milton na turnê do álbum Minas (1975), fazendo parte de uma "superbanda". "Lembro-me de minha emoção de tocar com essas feras em ginásios gigantescos e lotados, com média de 25 mil pessoas, inacreditável!", diz ele. Zélia conta que a primeira música que cantou na vida, quando tinha 16 anos, em Brasília, foi Fazenda, do disco Geraes (1976). "Se você se sente segura para abrir o show com uma música de um repertório de um cantor, é porque já o ouvia há muito tempo. Então, o Milton já rolava na vida e na família. A voz dele tem gosto, tem cheiro, tem a cara da minha casa. Milton está na minha essência."

Mesmo assim, o desafio era grande. Zélia se perguntou: "Cantar Milton tudo bem, mas o que pode ser inusitado?". Veio, então, a resposta. "Cantar Milton sem instrumento de harmonia. A obra do Milton é tão intocável para nós que a conhecemos, os arranjos estão no seu coração. Essa foi a graça que descobri com o Jaques: é quase que um truque chamá-lo, porque você chama só um instrumento, mas é um cara que corresponde a uma orquestra", diz a cantora e compositora. "Ele sugere um arranjo grandiloquente que o Milton faz, mas ele é só um."

O duo é equilibrado, com voz e cello se alternando e se complementando. Há momentos em que eles caminham lado a lado e, em outros, se encontram. Os dois têm o mesmo peso nesse trabalho. "O Jaques não fica me buscando como um violão me buscaria. Faz a parte dele – claro, integrado comigo e eu com ele –, mas são duas pessoas desempenhando ali. É um desafio muito grande para mim como cantora", afirma Zélia.

Menos é mais 
Conhecida por sua voz grave poderosa, Zélia preferiu aqui interpretações mais suaves. Herança clara, e confessa, de sua experiência no projeto Totatiando, dedicado à obra de Luiz Tatit. "Tem a ver com meu jeito de olhar a música, a vida, o quanto aprendi com o Tatit, num extremo que acho maravilhoso e privilegiado de que o menos é mais e que o canto veio da fala", observa ela. "Então, por que vou pegar o que uma das vozes mais impressionantes de todos os tempos cantou e ficar tentando fazer um vozeirão? Acho que seria tão inútil, acho que esse trabalho está chamando para o avesso, a beleza do avesso."

O show nasceu antes do disco. Em 2015, o produtor André Midani chamou Zélia para participar de seu projeto Inusitado, cantando músicas de Milton. Depois, foi a vez de Jaques Morelenbaum ser convidado, conta o músico. Naná Vasconcelos também estaria no projeto. "Mas infelizmente ele se foi antes de realizarmos o concerto", diz Jaques. "Daí veio a dúvida de substituí-lo, e por quem. Já tínhamos um nome, ou melhor uma lista de preferidos, mas afinal resolvemos encarar o desafio (autodesafio) de traduzir Milton para a linguagem voz e cello, minimalista."

Os dois fizeram algumas apresentações. O próprio Milton assistiu ao show deles no Rio – "foi a maior emoção pra gente", lembra Zélia. E o desejo de transformar aquele projeto em disco surgiu naturalmente. "Creio que, desde o primeiro momento em que transformamos teoria em prática e efetivamente ouvimos os sons de nossa 'orquestrinha' de cello e voz, já veio a vontade de registrar isso, e mais, a vontade de fazê-lo com um repertório muito mais extenso, dada a quantidade de pérolas que encontramos nesse universo 'miltoniano' que não pudemos incluir nesse espetáculo e disco agora lançado", afirma Jaques.

Diante de uma obra tão ampla, Zélia conta que ela e Jaques montaram suas listas de canções, para depois cruzá-las. Muita coisa também foi definida nos ensaios. "É diferente você pensar e realizar. Quando você vai cantar, pode se apropriar daquilo. As músicas vão se sobressaindo à medida que você vai exercitando, e assim foi com a gente também", diz ela. Jaques conta que a escolha das canções se deu por critérios afetivos, e democraticamente. "No caso da Zélia, creio que as poesias a serem cantadas tiveram uma preponderância sobre as demais, assim como no meu caso, a estrutura melódico/harmônica/rítmica era o que mais me seduzia e atraía", comenta.

Invento  
. Zélia Duncan e Jaques Morelembaum
. Biscoito Fino
. 14 faixas
. R$ 34,40

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