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Elke Maravilha: vanguardista da moda às questões de gênero

Morta aos 71 anos, a atriz, apresentadora, cantora e modelo inspirou coleção de estilista pernambucano e se tornou referência de liberdade e estilo

As passagens de Elke Maravilha por Pernambuco renderam, além de amigos, coleção inspirada em sua trajetória. Foto: Jaqueline Maia/Arquivo DP

Personagem caricata, versão extravagante de si mesma, Elke Maravilha não se dizia mulher, nem homem. Transgredia os limites de gênero para assumir possibilidades mais vastas na condição de criatura viva, transgressora, livre, uma “pessoa” simplesmente. Nascida Elke Georgievna Grunnupp, em Leningrado, na Rússia, tomou os palcos brasileiros como modelo, atriz, apresentadora, cantora. Na última turnê pelo Recife, em janeiro deste ano, mesclou a própria história a canções interpretadas em quatro idiomas.

Era única porque estrambólica, colorida, poliglota, vanguardista. Na madrugada de ontem, foi brincar de outra coisa. Faleceu no Rio de Janeiro, onde estava internada desde o dia 20 de junho, na Casa de Saúde Pinheiro Machado, em Laranjeiras, Zona Sul da capital carioca. Diabética, Elke era mantida em coma induzido desde que operara uma úlcera, mas já não reagia às medicações. “Avisamos que nossa Elke ja não está por aqui, conosco. Que todos os deuses, que ela tanto amava, estejam com ela nessa viagem”, foi publicado em sua página no Facebook, anunciando a partida.

Elke Maravilha foi vanguardista de um estilo próprio, extravagante, ainda nos anos 1960 e 1970. Fotos: Arquivos DP

Precursora de caminho estético peculiar, assumiu contornos que lhe renderam, nos 71 anos de vida, comparações a David Bowie, Prince, Lady Gaga. Os olhos delineados, as pálpebras coloridas até as sobrancelhas, os batons escuros e a vasta cabeleira de dreads, traços concebidos por ela mesma, apontavam raízes diversas, independentes no tempo e espaço: a Rússia, os vikings, o Egito, as tribos africanas.

Elke Maravilha era plural. Entendia e vivenciava arte e moda como ferramentas de divertimento, mas também ato político, expressão da própria identidade. “Algumas pessoas acham que eu me fantasio. Eu digo que não. Eu sou assim. Fantasia é quando você veste algo que você não é”, declarou em entrevista ao Estado de S. Paulo, ao estrelar campanha de inverno do jovem designer Lucas Magalhães, no ano passado, quando encarnou Maria Bonita em coleção dedicada à cultura nordestina. Elke não se intimidava pelos tapetes vermelhos - nos anos 1970 e 1980, cruzou as passarelas vestida pelos principais estilistas brasileiros da época, como Clodovil e Zuzu Angel -, mas subvertia os padrões.

Elke ao lado do estilista e designer pernambucano Beto Kelner, que assinou coleção inspirada nela. Foto: Beto Kelner/Arquivo pessoal

“Elke sempre transbordou autenticidade. Ela foi pioneira numa corrente de pensamento que via a moda como ferramenta de empoderamento, expressão pessoal. Os kaftans, os shorts e as botas compridas, além dos adereços para cabelo, são suas maiores marcas. O mais impressionante é como o excesso de acessórios se tornava harmônico nela. A personalidade forte sustentava essa ousadia”, lembra Kelner, cuja casa em Porto de Galinhas, Litoral Sul do estado, abrigou muitas vezes a hóspede extravagante.

Em russo, o nome de Elke significa Alce, o que inspirou elementos da coleção. Foto: Beto Kelner/Arquivo pessoal

O corpo de Elke Maravilha está sendo no Teatro Carlos Gomes, no Rio, e o sepultamento ocorre às 16h desta quarta (17), no cemitério de São João Batista, também na capital carioca. Casada oito vezes, Elke não teve filhos - fez três abortos, sobre os quais falava abertamente. “Tenho saudade do futuro. O passado já foi, não quero voltar”, disse numa de suas últimas entrevistas, no Programa Raul Gil. E se avaliou: “Tenho muitos arrependimentos. Deveria ter sido melhor em algumas situações. E pior em outras.”

>> Última visita

A última passagem de Elke Maravilha pelo Recife foi em janeiro passado, na programação musical do Janeiro de Grandes Espetáculos. Acompanhada do cantor, compositor e multi-instrumentista pernambucano Adriano Salhab, cantou e contou passagens da própria vida, intercalando memórias a músicas entoadas em quatro idiomas diferentes. A montagem intimista Elke canta e conta teve direção de Rubens Curi e cenografia inspirada na casa da própria artista.

>> Apátrida

De Zuzu Angel, Elke virou amiga. Foi presa no Aeroporto Santos Dumont, no Rio, em 1971, rasgando aos gritos cartazes com a foto de Stuart Angel Jones, filho da estilista, preso político da ditadura militar no Brasil. Enquadrada na Lei de Segurança Nacional, ela foi detida por seis dias e tornou-se apátrida. Mais tarde, requisitou e obteve cidadania alemã. Jamais voltou a requerer passaporte brasileiro, embora continuasse a viver no país.

>> Maravilha

É atribuído ao jornalista Daniel Más o apelido Elke Maravilha. O codinome teria sido anunciado por Chacrinha, com quem Elke Grunnupp iniciou a carreira na televisão. Novelas, filmes e peças viriam na esteira da Discoteca do Chacrinha, com quem ela trabalhou durante 14 anos.

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