Num retrospecto, o cineasta paraibano Vladimir Carvalho se dá conta de que o mais recente longa dele - o documentário Cícero Dias, o compadre de Picasso -, constitui uma trilogia do modernismo. "O longa O homem de areia, de 1981, foi sobre José Américo de Almeida, que abriu o ciclo do romance social do Nordeste. Sob a influência dele, agiu José Lins do Rego, retratado em O engenho de Zé Lins (2007). E, agora, no campo das artes plásticas, veio o (pernambucano) Cícero Dias", analisa. O novo filme integra a mostra competitiva do 21º Festival É Tudo Verdade (a partir de amanhã), um dos mais respeitados do país, com exibições em São Paulo e no Rio de Janeiro - ao lado de duas outras produções (veja ao lado).
"Faço por onde não perder a curiosidade: com um mínimo de energia, você é estimulado pelo próprio mundo - e isso é recíproco", observa o diretor, aos 81 anos. Sem concessões à direita ou à esquerda, como diz, Vladimir tão somente pretendeu o entendimento de Cícero, "agente de choque entre o velho e o novo, numa condição que suscita perplexidade ou equivocada rejeição". Cícero Dias, o compadre de Picasso aguçou o espírito quixotesco do diretor, que evitou pedir dinheiro ou encarar editais. "O longa é genuinamente independente: não teve um centavo do poder público e contou apenas com parte da finalização do Canal Brasil. A produção foi minha, que sou um professor aposentado, e não mais do que isso", confirma.
Preocupado com a memória que desaparece, Vladimir se dedicou ao primeiro filme do artista nascido em Escada (Pernambuco). "Ele é um capítulo da arte brasileira moderna. Há quem associe a flutuação da pintura dele com a de Marc Chagall. Optei por enfocá-lo por fases. Tem aquela solar, lírica, com ares surrealistas, nos anos entre 1920 e 1930. Depois, ele representou a decadência de uma classe, com ambientes da família patriarcal", diz.
Na percepção do diretor, Cícero lançou mão de um imaginário que apreendeu a poesia impregnada no ambiente pernambucano. "Mesmo no abstracionismo, ele manteve as cores do Recife: na frutaria, nas paisagens vegetais - tudo aquilo foi esquematizado no geometrismo regional", pontua Carvalho.
Com prática em xilogravura, Vladimir herdou interesse pela arte a partir do pai, dono de fábrica de móveis, versado em escultura e desenho. Figura curiosa, maluca e extrovertida, Cícero surge na tela, sob o prisma dos escolados "meninos de engenho", no embalo de Joaquim Nabuco e João Cabral de Melo Neto. "Em 1928, com exposição em cidade do interior, ele não teve aval do vigário, que disse: 'Deus me livre! Isso é arte do diabo!'", diverte-se o diretor, explicando ainda o contexto do Salão Revolucionário (RJ), propiciado por Lucio Costa, em 1931, e no qual o meio acadêmico teve que engolir as proporções (12m x 2m) do painel Eu vi o mundo... Ele começava no Recife, de Dias, vandalizado por remeter a cenas de sexo, mas tido como "a Guernica brasileira".
Duas idas a Paris e três viagens ao Recife renderam arsenal de informações para o documentário. Uma retrospectiva de Cícero, no Ano do Brasil na França, deflagrou a gênese do filme, em 2005. O galerista Jean Bouyguess apresentou ao cineasta a viúva do pintor, Raymonde, e a filha dele, Sylvia, que o guiaram em visita ao ateliê do artista morto em 2003. Em dois anos, também foram consultados o historiador e biógrafo Waldir Simões de Assis Filho, escritos de Mário Pedrosa, o crítico de arte Frederico Morais e o artista Francisco Brennand, que disparou contra crítico de Cícero Dias, o jornalista Mário Melo: "Ele era o anticristo da imprensa pernambucana".
Quebra de paradigmas
O choque cultural, com a influência europeia absorvida a partir dos anos 1930, claro, não deixa de ser tema do longa. "Ele voltou abstracionista e, tendo o velho como impeditivo, o nascimento do novo é sempre difícil. Sempre assimilei aquilo de a crise consistir no quase impedimento do novo nascer", sublinha Vladimir Carvalho. Uma exposição em 1948, no Recife, marcou o estranhamento com os críticos - "mas o povão foi ver, por não ter preconceito", assinala o cineasta. As mudanças vieram a reboque do cicerone brasileiro de Cícero no exterior, Di Cavalcanti. Tudo resultado de interações com a fina nata de revolucionários como Pablo Picasso, Georges Braque e Fernand Léger. Cícero já não era o mesmo.
Histórias bem danadas
Outras duas produções do estado participam do festival. Uma é o curta-metragem Fora de quadro, de Txai Ferraz, que propõe "uma reflexão autocrítica sobre a pesquisa e a entrevista no documentário" a partir do retrato da vida de um pedreiro, uma estudante, uma professora e uma empregada doméstica. O outro é o longa Danado de bom, de Deby Brennand, sobre o compositor João Silva, um dos principais colaboradores de Luiz Gonzaga. Pagode russo, Nem se despediu de mim, Sanfoninha choradeira, Forró de cabo a rabo, Deixa a tanga voar e Danado de bom estão entre as canções de autoria de João (1935-2013), que era vivo quando as filmagens começaram.
A produção do longa levou a lugares que inspiraram a obra, no interior de Pernambuco. Filme tenta transmitir o saudoso imaginário nordestino presente nas letras. João Silva contribuiu para o retorno de Gonzagão às paradas de sucesso na década de 1980, na última fase da carreira do Rei do Baião.
Inédito, Danado de bom será exibido na programação da mostra O Estado das Coisas. Nos últimos anos, outros compositores que trabalharam com Luiz Gonzaga também foram temas de filmes, como José Dantas (Psiu, de Antonio Carrilho), Humberto Teixeira (O homem que engarrafava nuvens, de Lírio Ferreira) e Nelson Barbalho (O imortal do país de Caruaru, de Wilson Freire).
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