Nascido da contracultura, filho poético e político do movimento hip hop que tomou de assalto muros de capitais por todo o mundo nos anos 1960 e 1970, o graffiti transforma vozes - originadas frequentemente na periferia - em arte visual em pelo menos seis regiões do Grande Recife. O mapa dos percursos, fruto da pesquisa de antropóloga, fotógrafo e sociólogo pernambucanos, estão disponíveis ao público a partir deste sábado (19), em site dedicado ao mapeamento inédito da manifestação artística no estado, desdobramento do projeto Trilhas do graffiti - percurso imagético das escritas urbanas em Pernambuco. A iniciativa reverbera ações locais como o projeto Recife Arte Pública, lançado no mês passado e dedicado a mapear esculturas e painéis da capital pernambucana.
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“O graffiti, equanto linguagem, é efêmero. Há desenhos que estampam os muros hoje e não estarão lá amanhã. Os próprios artistas ocupam e transformam a cidade com muita rapidez. Assim, o mapeamento ajuda a registrar esse recorte histórico da arte urbana”, explica a antropóloga Nicole Costa, debruçada sobre o projeto desde o início de 2014. Acompanhada pelo fotógrafo Josivan Rodrigues, pelo sociólogo Sérgio Ricardo, pelo artista Galo de Souza e pelo designer Raul Kawamura, Nicole pretende estender o projeto a outras regiões do estado. Petrolina, Paulista e Cabo de Santo Agostinho estariam na lista. “É inapropriado classificar uma pesquisa como definitiva, especialmente quando envolve arte e o cenário urbano”, complementa a antropóloga, que frisa a continuação da pesquisa após o lançamento do site - que será ativado hoje, às 19h, durante o festival Recifusion, no Espaço Preto no Branco, no Bairro do Recife.
A característica mais marcante do graffiti em Pernambuco, segundo os pesquisadores, é a diversidade temática. Para explicá-la, foram traçados perfis de 26 artistas, cujas assinaturas apareceram mais frequentemente nas pesquisas, entre Jota Zeroff, Dinha, Adelson Boris, Arbos e Paulo do Amparo. “Conhecê-los, entender seus pensamentos, ajuda a compreender as obras. Elas estão lá, nas ruas, em toda parte, mas poucas vezes nós realmente as contemplamos”, diz.
ENTREVISTA: Sérgio Ricardo, sociólogo
O sociólogo, líder da Associação de Hip Hop, colaborou com as pesquisas e articulou a relação do grupo com os artistas do graffiti
Ao meu ver, o graffiti já se tornou uma arte socialmente aceita. Graças à mobilização dos grafiteiros e grafiteiras junto ao poder público, conquistamos espaços e aceitação. Mas o preconceito existe, sim. Especialmente porque há uma linha tênue entre o graffiti e a pichação. O hip hop entende as duas correntes como manifestações artísticas legítimas, mesmo porque, quando o hip hop surgiu, os grafiteiros eram pichadores que riscavam os muros para marcar território. Porém, o movimento entende o graffiti como sua expressão artística oficial. Na minha opinião, o graffiti tem sido mais aceito porque a pichação guarda caráter anarquista. Considero o graffiti uma evolução da pichação, em relação aos traços e às mensagens políticas. A pichação costuma ser uma exaltação do próprio autor, enquanto o graffiti repassa outras mensagens, de cunho político, social. Precisamos ocupar os espaços, nos apropriar deles democraticamente, mas precisamos saber como fazê-lo. E o graffiti entende isso. Projetos como o mapeamento promovem o diálogo, aproximam a sociedade do graffiti. As pessoas passam a entender que não se trata apenas de rebeldia, mas há razões por trás daquela expressão, daquela arte.
Como vê a evolução do graffiti em Pernambuco?
Esteticamente falando, o graffiti passou a dialogar com a arte regional, como a xilogravura, por exemplo, assumindo identidade pernambucana. Isso é notável nas obras de artistas como Galo e Derlon, figuras de representação nacional. O graffiti também passou a ser contemplado por políticas públicas nos últimos anos, em editais de incentivo. Os artistas passaram a discutir com representantes do poder público, batalhar pelo espaço. Lutas políticas, como o feminismo, também deram força ao graffiti no estado. É uma forma de empoderamento das mulheres, especialmente nos últimos dez anos, quando mais mulheres se engajaram no movimento hip hop. Hoje, Pernambuco tem uma cena de graffiti feminino muito forte.
Como se deu a articulação entre os artistas? Como eles receberam o mapeamento?
A minha impressão é de que os artistas receberam o mapeamento da melhor forma possível. Tivemos contato com cerca de 30 artistas, que colaboraram com as pesquisas. Alguns, por motivos diversos, não puderam contribuir. Mas foi, sim, uma articulação fácil. Eles entendem que se trata de uma catalogação, um registro do trabalho artístico desenvolvido pelo hip hop nos últimos anos, algo inédito, que fortalece o graffiti local.
O hip hop ganha, acima de tudo, um registro para a posteridade. Há poucos registros da história dos movimentos populares, de periferia. Teremos, agora, um acervo digital riquíssimo sobre pessoas que construíram trabalho de grande expressão nas artes visuais. Todo povo deve ter memória.
Atualmente, quais as principais características do graffiti local?
A questão política é o que mais me chama atenção. Mas as temáticas são muito variadas, não é possível determinar correntes específicas de pensamento. O movimento mangue influenciou fortemente as últimas gerações do graffiti, isso está muito vivo no cotidiano, compõe a nossa identidade. O que me entusiasma é a forte crítica política e a expressão regional, a associação a elementos armoriais, folclóricos.
Em linhas gerais, qual o significado do graffiti para a periferia, onde a manifestação se originou?
O graffiti representa, acima de tudo, o direito à comunicação. É o instrumento de comunicação e ferramenta de inclusão social. Levanta a perspectiva de que um jovem da periferia queira estudar para se tornar um grande artista plástico, por exemplo. Aumenta a autoestima dos grafiteiros, que veem sua arte nos muros, à vista de todos. É uma oportunidade do sujeito ter seus direitos reconhecidos de alguma forma, e a luta por eles é fortalecida. Historicamente, o graffiti tem enorme relação com a crítica social. Artistas como Boris valorizam as mulheres, a cultura negra, isso desconstrói preconceitos, torna o graffiti uma forma de politização, engaja a juventude, desfaz estigmas em torno da periferia.
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