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Opinião: Filme Tangerine traça retrato frenético e visceral da Babel americana

Filósofo pernambucano Érico Andrade interpreta símbolos presentes no longa-metragem protagonizado por transexuais, em cartaz no Cinema do Museu

 

Por Érico Andrade*

Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Esse foi o lema do cinema novo produzido por Glauber Rocha no Brasil cujo foco era um cinema feito de modo simples e que retratasse a corrosão social provocada pela pobreza. Tangerine aposta em algo similar quando opta por uma filmagem feita por meio de smartphones e aplicativos para retratar a pobreza no seio da nação mais rica do planeta. Diferentemente do cinema de Glauber, mais centrado na desigualdade e na pobreza brasileira, sobretudo do Nordeste brasileiro, Tangerine amplia a função social do cinema quando incorpora em sua frenética narrativa elementos cuja importância política atual é incontornável.

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Por isso, Tangerine não é um filme apenas sobre um tema como a prostituição, mas é também sobre gênero, imigração, pobreza, consumismo, etc. O filme condensa em aproximadamente uma hora e meia os dramas da sociedade americana com um realismo tanto viceral quanto elétrico. Viceral porque segue a opção de uma narrativa que percorre em um único dia e, portanto, sem deixar o expectador respirar, todas hesitações, humilhações, criminalização, sabores e dessabores da prostituição. É elétrico porque feito com a estética dos traillers e videoclips: muito movimento das personagens, trilha sonora com muita batida e alguns diálogos recheados de gírias e palavrões comprimem o tempo para dar o toque de intensidade aos dramas tratados no filme. A estética da periferia, estampada nos vários outdoors (que são frequentemente enquadrados durante o filme), nos tons de cabelo, nas roupas e na linguagem, fala do avanço da periferia na sociedade americana.

Não é a primeira vez, contudo, que o cinema americano narra os dramas da sociedade americana, mas certamente é uma das raras vezes em que não se opta por uma espécie de meta-clichê, cuja preocupação é mostrar por meio de clichês os clichês do cinema americano, para dar cores de carne viva a desigualdade que move os USA. Não há mexicanos (a menção aos mexicanos aparece no diálogo de dois jovens bêbados e nos anúncios de restaurantes); não há sangue; não há índios “bandidos" (o índio que aparece no filme é uma senhor por assim dizer perdido na cidade); não há estrelas de Hollywood (apenas alguns dos seus nomes aparecem nas estrelas das calçadas sobre as quais Sin-Dee passa anonimamente); não há o herói americano que vence na vida depois de muito esforço; e o Donuts não é apenas um lugar de venda de junk food, mas um espaço para o cafetão poder operar à margem da polícia.

Os USA são definitivamente estilhaçados quando Tangerine mostra o cosmopolitismo periférico que dá a pobreza os mesmos sotaques e cores presentes ao longo da história americana: na cena em Sin-Dee caminha com Alexandra ela, também negra, destaca “mais um jovem negro andando de skate pensando que poderá ser um célebre skatista”; o taxista armênio é objeto das piadas racistas de jovens americanos; a asiática trabalha de caixa no Donuts; os pobres na fila do bandejão são majoritariamente negros, os playboys americanos são os que jogam urina no travesti. Todas as personagens que compõem a Babel americana (comicamente apresentada na cena do encontro de todas elas no Donuts) são marcadamente excluídas e mostram que o sonho americano tem fronteiras raramente transponíveis.

* Érico Andrade é filósofo e professor da Universidade Federal de Pernambuco, com doutorado pela Université Sorbonne (Paris IV)

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