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Cadáveres contribuem silenciosamente para a ciência e inspiram as artes

Defuntos têm papel no avanço da medicina, na investigação de crimes e até ajudam a salvar vidas, com transplante de órgãos doados. Literatura, cinema e artes plásticas se inspiram na morbidez do tema.

Crédito: Museu Nacional de Medicina dos EUA

De maneira silenciosa, sem exigir crédito algum, cadáveres fazem história junto à ciência há mais de 2 mil anos. Entre os muitos feitos, já ajudaram a provar a necessidade do uso do cinto de segurança, após testes de colisão. Foram voluntários para a criação da guilhotina, na França, naquela época considerada opção "humanitária" à forca. Viajaram ao espaço. Todos os dias, um corpo doado é igualmente capaz de proporcionar transplantes de órgãos e salvar várias vidas. Essa longeva interação entre mortos e vivos também inspirou e inspira as artes, desde a escrita do clássico Frankenstein, de Mary Shelley, até roteiros de filmes e episódios de séries contemporâneas, como CSI, Shameless e Grey’s anatomy.

Crédito: Museu Nacional de Medicina dos EUA

Embora instituições educacionais de todo o mundo enfrentem dificuldades em mantê-los introduzidos no currículo da graduação (diante da substituição por bonecos ou pela simples observação de profissionais experientes), defuntos ainda são peça-chave na formação. “Há um número surpreendente de doadores que, na verdade, não se importam com o que vai acontecer com eles. Para eles, trata-se apenas de um meio prático de dar destino a um corpo, um meio prático que, por sorte, tem um componente de altruísmo", sugere, no livro, o historiador Art Valley, especialista na história da doação de corpos. 

De fato, é preciso desapego, pois uma pele doada, por exemplo, quando não aproveitada para enxertos em vítimas de queimaduras, pode servir para um procedimento cosmético de aumento de pênis. Como consolo (aqui, sem trocadilho), resta o fato de a maioria das escolas de medicina terem se organizado, mais recentemente, para promover atitudes respeitosas em relação aos cadáveres utilizados. Há cerimônias cuja participação de parentes dos mortos é inclusive permitida e encorajada.

Mas nem sempre os defuntos foram tratados com o devido respeito. Já foi comum, por exemplo, estudantes e professores de medicina atacarem cemitérios para roubar corpos (ou contratar quem o fizesse). No século 17, o literato francês Sebastién Mercier descrevia: “Jovens cirurgiões reunir-se-ão em número de quatro, tomarão uma tipoia, assaltarão um cemitério. Um luta com o cão que guarda os mortos; o outro com uma escada desce à vala; o terceiro está montado no muro, lança o cadáver; o quarto o apanha e o põe na tipoia”. Naquela época, também não era visto com estranheza o fato de cadáveres serem utilizados em larga escala para testar o impacto de munições pelas forças armadas de vários países.

Crédito: Museu Nacional de Medicina dos EUA

>>>>>> UM LIVRO >>>

O ladrão de cadáveres, de James Bradley (Record, R$ 45) - Na Londres de 1820, Gabriel Swift passa a ter aulas com o anatomista Edwin Poll e descobre um lado sombrio da medicina. Ele começa a vender corpos e extorquir dinheiro, e a ambição o conduz ao assassinato.

DEIXADOS AO SOL 

A medicina legal é incessante no aperfeiçoamento de técnicas capazes de elucidar crimes. Uma maneira de fazer isso é descobrir, a partir da decomposição do corpo da vítima, o dia e até a hora aproximada da morte. Para avançar em estimativas dessa espécie, são mantidos centros de estudos médicos como o de Knoxville, Tennessee, nos Estados Unidos. Trata-se de uma área de pesquisa de campo dedicada a estudar a decomposição de cadáveres doados. Por lá, são analisadas minuciosamente as etapas biológicas e químicas, a duração de cada uma delas e como o meio ambiente as afeta. Cerca de 700 corpos são avaliados simultaneamente.
>>>> UMA SÉRIE >>>>
CSI: Miami – Crime scene investigation (Box 1ª temporada, DVD, R$ 39,90) – O programa acompanha equipe de investigadores do sul da Flórida, nos EUA, que utiliza tanto de tecnologia de ponta quanto os métodos à moda antiga para desvendar crimes.

ALÉM DA CAIXA-PRETA

Os corpos de vítimas de um acidente aéreo são capazes de contribuir para desvendar os motivos de uma tragédia tanto quanto as informações guardadas na caixa-preta. Em casos específicos, profissionais especializados em traumatologia são capazes de recorrer à chamada patologia da aviação para analisar e decodificar os destroços humanos. Por meio do tipo e gravidade das lesões, são juntadas peças do quebra-cabeça. Com uma pitada de sarcasmo, a jornalista Mary Roach especula várias possibilidades para sobreviver a um acidente aéreo. "Eis o segredo: ser homem. Numa pesquisa do Instituto Civil de Aeromedicina (...) o fator mais importante para a sobrevivência foi o gênero. Concluiu-se que os homens adultos são de longe os mais prováveis sobreviventes. Por quê? Supostamente porque tiram todos os demais do caminho a empurrões".
>>> UMA SÉRIE >>>>
 Mayday: Desastres aéreos (segunda a sexta-feira, à 1h, no National Geographic) investiga os mais famosos e terríveis acidentes de avião, reconstrói a experiência de passageiros, pilotos e controladores de voo. No formato de documentário, os episódios recuperam gravações, depoimentos, documentos e reportagens sobre as tragédias.

TIRO AO ÁLVARO
Exércitos suíços, alemães, franceses e norte-americanos já utilizaram corpos humanos como plataforma para testar a potência balística de novas armas, conforme comprovado por pilhas de documentos históricos. Em própria defesa, estudiosos por trás desses experimentos deixaram relatos de um suposto benefício decorrente dos testes. A ideia era usar a pesquisa balística com cadáveres para levar a uma "forma de luta mais humana com armas de fogo". Segundo eles, o objetivo da guerra não é matar o inimigo, mas apenas torná-lo incapaz de lutar. Assim, em algumas ocasiões aconselhavam reduzir o tamanho dos projéteis e usar material capaz de destruir menos os tecidos do corpo. 
>>> UM FILME >>>
Amarelo manga (2002) - No Hotel Texas, também na periferia da cidade, trabalha Dunga, um gay que é apaixonado por Wellington, casado com Kika. Um dos hóspedes, Isaac, sente grande prazer em atirar em cadáveres, que lhe são fornecidos por Rabecão, um funcionário do IML.
 
MEU CORAÇÃO É SEU
Em 2014, 7.898 órgãos foram doados e transplantados no país, segundo a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos. Em geral, o melhor cenário para o aproveitamento dos cadáveres são casos de morte cerebral, quando a pessoa está teoricamente viva e bem de saúde, exceto pelas funções da mente. Assim, a possibilidade de transplante pode salvar várias vidas. Mas nem sempre essa foi uma realidade possível. Como os respiradores artificiais só foram inventados na década de 1950, a história tem casos bizarros quando se trata da declaração da morte de alguém. Nos séculos 18 e 19, diante de ocorrências de pessoas enterradas vivas, os médicos criavam métodos para evitar tal infortúnio, como passar lâminas nas solas dos pés, puxar a língua com força, enfiar agulhas embaixo da unha, colocar ferros em brasa no ânus, prender pinças nos mamilos, enfiar lápis no ouvido, derramar cera fervente na testa e urina quente na boca.
>>> UM FILME >>>
Enterrado vivo (2010, DVD, R$ 27,90)>>> Paul Conroy acorda enterrado vivo dentro de caixão de madeira. Sem saber o que aconteceu e o porquê de estar ali, ele tem em suas mãos apenas um telefone celular e um isqueiro. Sequestradores exigem um resgate milionário para libertá-lo.

[SAIBAMAIS]VIDA ELETRIZANTE
Em meados de 1780, o professor italiano Luigi Galvani conduziu experiências científicas para mover membros de um sapo morto ao utilizar impulsos elétricos. Coube ao sobrinho do cientista, Giovanni Aldini, dar prosseguimento à ideia. Ele viajava por várias cidades para eletrocutar cabeças humanas, olhos e pernas, como em um show de mágica. Em 1803, aplicou eletricidade no rosto de um cadáver, cuja expressão facial se alterou, a ponto de abrir um dos olhos. Depois, ao eletrificar o corpo inteiro, fez o defunto se movimentar como em uma dança. Por muitos anos, outros pesquisadores investiram no método na esperança de ressuscitar os mortos, pois enxergavam a eletricidade como um “fluido vital”.
>>>> UM LIVRO >>>
Frankenstein, de Mary Shelley (LP&M, R$ 18,90) - As experiências de Giovanni Aldini influenciaram a escritora inglesa a escrever um dos grandes clássicos da literatura. No livro, narra a história do doutor Victor Frankenstein e da monstruosa criatura por ele concebida.

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