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Louvação ao cinema pernambucano é questionada por cineastas

Segundo diretores, bom momento vivido pela produção cinematográfica de Pernambuco merece ser comemorado, mas com visão crítica para evitar bairrismos e rótulos

 

O bom momento vivido pelo cinema pernambucao merece ser comemorado, mas de forma crítica. Essa celebração, afinal, também expõe limites entre o bairrismo, a generalização, a embriaguez de sucesso e a constatação de um reconhecimento real. A insistência no uso da expressão "cinema pernambucano" tem um lado negativo? O que é, afinal, o "cinema pernambucano"?

Alguns têm respostas rápidas para essas perguntas. Outros não sabem como respondê-las. Há filmes produzidos em Pernambuco, dirigidos por cineastas pernambucanos de nascença, mas com equipes de produção onde a maioria dos profissionais vem de outras regiões do Brasil. Da mesma forma, há cineastas que nasceram no estado e nunca filmaram nele. Existem ainda produções pernambucanas filmadas em outros lugares.

E não se vê, em locais como o Rio de Janeiro ou São Paulo, uma semelhante afirmação do "cinema paulista" ou do "cinema fluminense", até porque esses são centros que sempre reuniram artistas e profissionais de diversas origens. Há quem defenda que o edital do audiovisual do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura) seja aberto a propostas de todo o país.

"Essa coisa do cinema pernambucano já está virando até chacota em certas rodas", identifica Camilo Cavalcante, diretor do premiado A história da eternidade. A discussão realmente tem rendido ironias. Para divulgar a festa Van Retrô, por exemplo, um grupo de estudantes universitários pendurou clandestinamente uma placa com a frase "Matou ao cinema e foi ao Central" na Rua Mamede Simões, onde funciona o Bar Central, frequentado por cineastas. Existe ainda uma página no Facebook chamada Coluna Social do Cinema Pernambucano.

OPINIÕES:

A Filha do Advogado (1926), Baile Perfumado (1996) e Cinema, Aspirinas e Urubus (2005)

Camilo Cavalcante, diretor do longa-metragem A história da eternidade e de 14 curtas:

Eu acho que essa coisa do "cinema pernambucano" já está virando até chacota em certas rodas. O cinema pernambucano não existe. Existem pernambucanos que fazem cinema e pessoas que fazem cinema no estado de Pernambuco. O grande trunfo do cinema realizado aqui é a pluralidade, não existe uma única vertente. Não existe um movimento. São movimentações. Cada filme tem a cara de seu realizador.

Marcelo Pedroso, diretor dos filmes Brasil S/A, exibido no Festival de Berlim:

Essa ideia de “cinema pernambucano” funciona hoje quase como uma “grife” à qual se atribuem várias características (diversidade autoral, companheirismo na produção dos filmes, propensão ao risco ou experimento, temas políticos etc). Acredito que ela tenha que se institucionalizado a partir de uma espécie de confabulação coletiva tacitamente acordada entre cineastas, governo, imprensa local, festivais e público. É óbvio que houve vários benefícios com a imaginação desse de rótulo. Mas há também alguns efeitos indesejáveis, como a tendência a querer encapsular uma produção totalmente heterogênea dentro de um selo caracterizado pela procedência espacial. Acredito que o mais curioso é ver o quanto essa ideia pode se tornar reacionária ao potencializar uma tradição artística sufocante que se funda ao celebrar coordenadas identitárias pautadas por uma geografia determinista. O quanto essa “grife” vai se manter ou ser antagonizada por uma nova geração - ou mesmo pela atual - é algo que temos que esperar para ver.

Hilton Lacerda, diretor de Tatuagem e roteirista de Baile perfumado (depoimento cedido em entrevista coletiva no Festival de Gramado):

Pra ser bem sincero, acho meio boba essa história de “cinema pernambucano”. A gente faz “cinema”, independente do local. A coisa mais impressionante no cinema de Pernambuco é a forma de produção que veio a calhar e que provou que você pode fazer experiências narrativas cinematográficas que não estejam estabelecidas em um eixo produtivo tão tacanho. Tem uma desordem que funciona de uma maneira completamente organizada. Isso dá um certo frescor. O primeiro roteiro que eu escrevi foi de um longa-metragem, o Baile Perfumado, em 1995, que já faz muito tempo. Então não é mais uma novidade, já tem uma coisa duradoura. Esse cinema está dialogando com muitas outras coisas, como as novas mídias que apareceram, novos suportes. Em Pernambuco foi criada uma mecânica de produção muito interessante. Você se estabelecer como uma referência para o mundo é uma coisa muito benéfica. Isso veio também com o movimento Mangue Beat. Você se percebe como parte de uma periferia da informação, não uma periferia no sentido de subúrbio, e sua voz interessa. Isso traz um novo olhar para a produção cinematográfica e cultural em geral."

Kleber Mendonça filho, diretor de Recife Frio e O som ao redor:

Cinema pernambucano é o feito no estado de Pernambuco por pernambucanos. Vem a calhar que nos últimos anos esses filmes têm chamado muita atenção no Brasil e exterior.

Alexandre Figueirôa, autor do livro Cinema Pernambucano: Uma história em ciclos e diretor do curta Eternamente Elza:

No mundo todo existe essa identificação das cinematografias em relação ao local onde elas surgem. Cinema japonês, cinema italiano, etc. Na França os filmes procedentes do Brasil são enquadrados na chave " cinéma brésilien" mesmo que vez por outra não se tenha muita precisão quanto a isso por diversas razões - o filme é uma co-produção entre dois paises, o diretor é brasileiro, mas o filme foi rodado fora do país, etc. Podemos aplicar o mesmo raciocínio para o cinema feito em Pernambuco, há uma identidade geográfica, mas existem também outros elementos identitários que surgem no estilo de alguns realizadores, nas temáticas, na linguagem, nos pontos de vista, na música, e qual o problema se eles sistematizam um conjunto de significados que levam os filmes a serem percebidos como filmes pernambucanos? Isso também é uma forma de reconhecimento de traços estilísticos e estéticos compartilhados. E isto não isola a produção local, os filmes feitos em Pernambuco estão dialogando com outros filmes produzidos no Brasil e no resto do mundo e muitas análises e estudos que pensam além dessa identificação da procedência - que é redutora é verdade, mas é bastante operacional - observam a produção local com olhares diversos e que valorizam a sua originalidade e contribuição para o audiovisual aqui e alhures.

Rodrigo Almeida, diretor do curta Casa Forte e curador da Antologia Cinema Pernambucano:

Quando trabalhamos com definições fechadas ou estreitas em demasia, corremos o risco de desenvolver uma consideração equivocada, esquecendo uma miríade de fagulhas que seguem regras particulares e desviantes do tomo considerado como padrão. O perigo se finca na criação de uma falsa homogeneidade. O que é o cinema pernambucano? Se alguns filmes possuem diálogos claros, como a juventude tardia do mangue beat encurralada entre tradição, rebeldia e modernidade, que produziu filmes revisitando a cultura popular com uma intenção cosmopolita, podemos dizer que de maneira global há uma dispersão de projeto único como projeto: tanto nas narrativas, tanto na política, como nos modelos de produção e circulação. Não existe um pressuposto estético unificador entre as distintas décadas ou mesmo numa mesma década; as maneiras de captação, finalização, experimentação variaram de ponta a ponta.

Cenas dos filmes A História da Eternidade (2014), Brasil S/A (2014) e Tatuagem (2015)

ANTOLOGIA

A caixa de DVDs Antologia Cinema Pernambucano, que começou a ser distribuída este mês, reúne 212 longas, médias e curtas-metragens produzidos em Pernambuco desde a década de 1920 até 2013. Idealizado pelas produtoras Isabela Cribari e Germana Pereira, o projeto atinge diretamente os dois maiores desafios atualmente enfrentados pela produção cinematográfica do estado: a difusão e a conservação.

"De fato, não existe uma relação sensível e orgânica entre os filmes pernambucanos e o público do estado, com o qual, em teoria, deveriam melhor se comunicar", constata Rodrigo Almeida, curador da compilação. O cinema produzido em Pernambuco tem feito sucesso em festivais, mas ainda não consolidou um espaço no circuito de exibição onde está a maior parte dos espectadores.

A questão da conservação é outro ponto que merece ações urgentes, já que é precária a situação dos acervos dedicados à memória audiovisual do estado, como o Museu da Imagem e do Som de Pernambuco (Mispe). Os próprios realizadores também enfrentam dificuldades para conservar seus filmes. "Nossa maior dificuldade, sem dúvida também uma tristeza, foi ver a situação em que se encontra o acervo cinematográfico do estado", lamenta Almeida.

"Falo especialmente pensando no ciclo Super 8, muitas coisas perdidas, muitas outras em via se perder, quase tudo em condições muito precárias", observou o curador: "Também falo sobre filmes mais recentes, de quinze, vinte anos para cá, que também estão perdidos ou só possuem cópias em péssima qualidade. Teve gente que quase perdeu seu filme porque descobriu que aquele HD de backup já não funcionava mais." Segundo Germana, a Fundação Joaquim Nabuco foi essencial para o projeto por causa de seu arquivo.

O box Antologia Cinema Pernambucano não está à venda. As caixas de DVDs serão distribuídas entre escolas, universidades, instituições ligadas ao audiovisual e mais de 120 cineclubes. Apesar de reunir alguns longas da década de 1920, a coletânea concentra-se mais nos curtas-metragens. Pela primeira vez, o público tem acesso a filmes produzidos no ciclo do Super 8, aos primeiros trabalhos de cineastas consagrados (como Lírio Ferreira e Paulo Caldas, diretores do Baile perfumado), a obras de videoarte e aos curtas do cinema mudo.


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