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Conto de Machado de Assis que aponta o diabo como criador do mundo vira animação

Em Adão e Eva, a história bíblica da criação do universo é subvertida por um dos personagens, cuja teoria credita ao tinhoso a origem da humanidade

Credito: Dogs Can Fly/divulgação

Com direção de arte do pernambucano Helder Santos, o vídeo é voltado para o público adolescente e faz parte de edital para adaptação de seis contos machadianos. Além da veiculação na tevê, o material é distribuído para escolas da rede pública e disponibilizado no site da emissora. “É muito legal o esforço de reaproximar o jovem da literatura, porque desfaz um grande trauma nascido na abordagem do tema pelos colégios. Ao ler por obrigação, o pessoal cria preconceito com histórias bacanas, como as de Machado”, opina o designer.

Em cinco meses, Helder cuidou de toda a estética do curta, desde as texturas, até o uso da luz e dos cenários. A primeira parte da animação se passa em um chá da tarde no fim do século 19, o que exigiu longa pesquisa para desenho da decoração, dos móveis e da arquitetura da época. Integrado à equipe da produtora paulista Dogs Can Fly, o artista gráfico revelou certo receio em lidar com tema tão controverso. “É um conto muito legal, que talvez soe polêmico para as pessoas mais religiosas. Sabíamos do risco, mas tivemos respaldo do canal de tevê. Como eles assumiram a ‘bronca’, a gente ficou à vontade para criar em cima de uma história tão bacana”.

Credito: Dogs Can Fly/divulgação

Para o professor e coordenador do curso de letras da Faculdade de Olinda, Neilton Limeira, adaptações audiovisuais de Machado de Assis têm excelente histórico, e costumam ser capazes de manter o tom irônico presente no comportamento e nas ações dos personagens. “A transposição de plataforma muda a perspectiva, mas a releitura vai muito de quem adapta. Independente disso, é fundamental para seduzir a nova geração de leitores, acostumada a combinar linguagens, sem deixar de ler obras imensas, como As crônicas de Nárnia e Harry Potter”. A princípio, o professor de teologia da Universidade Católica de Pernambuco Degislando Nóbrega não vê problema com a polêmica religiosa da animação. “Depende do contexto geral em que o tema é colocado. Assim como na literatura, há artifícios para expressar ideias diversas”.

Além de A ciência do bem e do mal, o projeto da TV Escola já viabilizou a criação dos curtas Miss Dólar, Apólogo, Aurora sem dia, Ideia de um canário e Tênis da hora, todos inspirados livremente na obra de Machado. Os três primeiros estão no ar no site da emissora (tvescola.mec.gov.br). “O fundamental é democratizar o acesso. Além de acessar o canal na internet, as instituições de ensino podem solicitar o envio de DVDs por correio ou a exibição dos vídeos nas salas de aula”, explica o coordenador de programação da TV Escola, Rodrigo Prado.

Credito: Dogs Can Fly/divulgação

%2b curtas

Um apólogo

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Rio de Janeiro, final do século 19. A capital do império vive conflitos, como a disputa entre a Agulha e a Linha para decidir qual das duas é mais importante na confecção de roupas. O embate ganha novos adeptos: Alfinete, Dedal, Tesoura e Fita Métrica.

Aurora sem dia

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O jovem Luis Tinoco sonha em ser poeta. Como o ofício não garante salário, o pai dele lhe arranja emprego de redator em agência de publicidade. Entre reclames, blogs, jingles e rimas, o destino do rapaz será traçado, com a poesia do cotidiano.

Miss Dollar

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Uma cadela de estimação procura namorado para sua solitária dona, Margarida. Na década de 1960, nas ruas do Rio de Janeiro, ela encontra dois pretendentes, dois amigos que disputam o coração da menina. O curta adapta conto escrito em 1870.

%2b trecho do conto Adão e Eva, de Machado de Assis

Veloso continuou dizendo que no sexto dia foi criado o homem, e logo depois a mulher; ambos belos, mas sem alma, que o Tinhoso não podia dar, e só com ruins instintos. Deus infundiu-lhes a alma, com um sopro, e com outro os sentimentos nobres, puros e grandes. Nem parou nisso a misericórdia divina; fez brotar um jardim de delícias, e para ali os conduziu, investindo-os na posse de tudo. Um e outro caíram aos pés do Senhor, derramando lágrimas de gratidão. "Vivereis aqui", disse-lhe o Senhor, "e comereis de todos os frutos, menos o desta árvore, que é a da ciência do Bem e do Mal."

Adão e Eva ouviram submissos; e ficando sós, olharam um para o outro, admirados; não pareciam os mesmos. Eva, antes que Deus lhe infundisse os bons sentimentos, cogitava de armar um laço a Adão, e Adão tinha ímpetos de espancá-la. Agora, porém, embebiam-se na contemplação um do outro, ou na vista da natureza, que era esplêndida. Nunca até então viram ares tão puros, nem águas tão frescas, nem flores tão lindas e cheirosas, nem o sol tinha para nenhuma outra parte as mesmas torrentes de claridade. E dando as mãos percorreram tudo, a rir muito, nos primeiros dias, porque até então não sabiam rir. Não tinham a sensação do tempo. Não sentiam o peso da ociosidade; viviam da contemplação. De tarde iam ver morrer o sol e nascer a lua, e contar as estrelas, e raramente chegavam a mil, dava-lhes o sono e dormiam como dois anjos.%u200B

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