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Homens se unem nas redes sociais para incentivar a paternidade ativa

Publicado em: 11/08/2019 08:43 | Atualizado em: 11/08/2019 10:40

Fernando Alvarenga, Livingstone dos Santos e Rodolfo Gonçalves têm perfis na internet dedicados a ampliar o debate sobre o papel do pai. Foto: Tarciso Augusto/Esp. DP

Todos os domingos quando chega da igreja, o consultor Livingstone dos Santos, 30 anos, reúne a família em frente à câmera. Captura o instante, busca palavras que expressem o sentimento da imagem e posta no Instagram. Em um perfil criado quando a mulher estava grávida, ele compartilha algo que nunca pôde viver. A relação de pai e filho. Expressar nas redes sociais a cumplicidade e os momentos vividos com as crianças é a forma que Livingstone encontrou de transbordar a experiência da paternidade. Assim como ele, cada vez mais homens têm usado as redes sociais para se conectar e incentivar a paternidade ativa. O movimento cresce a reboque da discussão sobre igualdade de gênero e é fruto da ruptura dos paradigmas da masculinidade.

Quatro em cada cinco homens serão pais em algum momento da vida. No passado, a imagem paterna era associada ao papel de provedor financeiro e protetor da família. Enquanto à mulher era dado o peso do cuidado, aos homens recaía a cobrança pelo sustento material. Ser frios e distantes emocionalmente dos filhos era tanto uma forma de exercer a autoridade como a manutenção de um estereótipo de masculinidade.

“Com a modernização da família, as tarefas passam a ser compartilhada pelo casal. As exigências por equidade de gênero pressionaram os homens a mudarem os papéis masculinos. Eles se tornaram paulatinamente mais presentes na vida cotidiana da família, assumindo, em conjunto com a esposa, as exigências da vida privada”, explica o psicólogo clínico e professor do curso de psicologia da Faculdade Frassinetti do Recife (Fafire) Eduardo Fonseca.

O pai de Livingstone morreu quando a mãe dele estava grávida, o que o inseriu na lista de oito em cada dez crianças brasileiras que têm como primeiro responsável uma mulher. Aos 19 anos, sem planejar, ele soube que ia ser pai. O momento de surpresa foi também de decisão. Livingstone decidiu ser um pai ativo. Não queria que o pequeno Victor fosse um dos 5,5 milhões de crianças não registradas pela figura paterna no país. Só que ele esbarrou na realidade. “Me diziam para trabalhar muito para sustentar meu filho. A sociedade não prepara o homem para ser pai, apenas provedor”, explicou. Com o primeiro, diz que foi aos trancos e barracos. Com o segundo também.

Aquilo sempre incomodou, e ele sempre tentou vivenciar ao máximo o tempo com os filhos. Até um dia em que estava trabalhando em uma loja de shopping e quase ficou hipnotizado com uma cena. A cumplicidade de um pai brincando com a filha. Com a mulher grávida em casa, Livingstone entendeu que a paternidade era uma questão de viver o vínculo, e que outros homens poderiam ajudá-lo nessa caminhada. Ao conversar com o homem que brincava com a menina, descobriu que existia uma rede de apoio de pais nas redes sociais e se engajou no movimento, criando o perfil @paidostres. “Quando a gente decide viver a paternidade na sua essência é algo transformador. Te transforma como ser humano, como homem, como marido, se assim for, como filho e como pai”, explica.

Ele tem razão. “Essa experiência de envolvimento afetivo no cuidado filial tem ajudado a despertar nos homens a sensibilidade, a ternura e o carinho”, explica Eduardo Fonseca. A mudança de paradigma é boa também para os filhos, que têm melhor autoestima, desempenho escolar, habilidades sociais e chances de ser pais e mães mais comprometidos, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Livingstone entendeu isso na prática e agora quer ser influenciador digital da paternidade ativa.

Juntos para romper com modelo de paternidade machista
Fernando Alvarenga começou a postar nas redes sociais depois de ter dificuldades para encontrar informações sobre paternidade. Foto: Andrea Leal/Divulgação

O homem que Livingstone dos Santos viu brincando com a filha no shopping era o jornalista Fernando Alvarenga, 34 anos. A experiência de paternidade de Fernando foi planejada, mas esbarrou numa dificuldade. Enquanto via a mulher sempre chegar com informações novas em casa sobre a vivência feminina da maternidade, Fernando suava para encontrar dados sobre o ato de ser pai e como se preparar para ele. Nessa busca, descobriu textos nas redes sociais que o ajudaram. Depois de ver isso, Fernando criou o perfil @paideverdade no Instagram e se engajou no movimento de disseminar informações para outros homens.

A primeira postagem foi uma massagem nos pés inchados da mulher. Hoje o perfil tem 1.197 posts e cerca de cinco mil seguidores. Transformou-se também em página do Facebook, canal do Youtube e blog. “O modelo machista de paternidade não é mais aceito. Percebi que compartilhando informações eu poderia contribuir para a igualdade de gênero. O meu comportamento pode influenciar o de outros homens”, diz ele. A motivação de Fernando é desconstruir a imagem do “pai que ajuda”. “A paternidade não é uma questão de habilidade, mas de vontade”, complementa.

Além do perfil nas redes sociais, Fernando participa de vários grupos sobre paternidade em aplicativos de mensagens como o Whatsapp. Um deles, o “Pai Todo Dia”, é fruto da iniciativa de outro digital influencer da paternidade, Raphael Pinteiro, e tem mais de 100 homens. Lá, são proibidas mensagens que não sejam sobre ser pai. Regra respeitada sem dificuldade por todos. Foi nesses grupos que começou a experiência de publicizar a paternidade do jornalista Geraldo Lélis, 33, dono do perfil no Instagram e do podcast @sosendopai. “Eu queria buscar entender como poderia participar do processo de gestação”, diz.

Para Geraldo, os grupos servem de inspiração para produzir os conteúdos da página e também para abastecê-lo na experiência de criar Clarice, 3. “Do mesmo jeito que produzo, preciso de conteúdo para exercer a minha paternidade. Enquanto estou falando sobre inteligência emocional, tem outro falando sobre afetividade, por exemplo”, conta.

Ao longo dos três anos em que mantêm as redes sociais ativas, Fernando e Geraldo perceberam uma mudança no perfil do público. No começo, a maioria era de mulheres. Muitas marcavam os companheiros nas postagens, que nem sempre respondiam, ou aplaudiam o conteúdo publicado. Atualmente, eles já percebem um engajamento masculino maior. “Hoje estou focando as postagens também em como a gente pode, por meio da paternidade, buscar a igualdade de gênero em casa”, afirma Geraldo. “Há uma carência de conteúdo com esse tipo de temática”, explica Fernando.

As postagens de páginas dedicadas à paternidade atraíram a atenção do administrador Rodolfo Gonçalves, 29. Com a esposa grávida de 7 meses, ele foi atrás de dados sobre o tema. Quando ela estava com quatro meses, decidiu criar também um perfil no instagram, o @paieagora. A rede de Rodolfo já nasceu na nova realidade: o público predominante é masculino. “Percebi que quanto mais nos unirmos para falar sobre a paternidade, mais os preconceitos vão ficando para trás”, conta. Entre eles, mais do que uma exposição da vida, as redes sociais cumprem a função de conexão. “É um sentimento de ‘eu não estou só’”, resume Fernando. 
Um desafio para toda a sociedade
Foto: Peu Ricardo/DP

“Ainda estás com esse negócio de paternidade?”. Os questionamentos chegam de todos os lados aos homens que se dedicam a falar sobre paternidade de forma pública nas redes sociais. O desafio de romper as barreiras da cultura patriarcal ainda se impõem diante das experiências individuais. O relatório Situação da Paternidade no Mundo, publicado pela ONG Promundo neste ano, mostra que as normas de gênero restritivas que posicionam o cuidado como responsabilidade das mulheres, com a percepção de que as mulheres são cuidadoras mais competentes do que os homens, ainda são desafios para a efetivação do conceito de paternidade ativa ou participativa.

Um estudo realizado pela Ipsos com o Instituto Global para Liderança Feminina do King’s College London, do Reino Unido, mostrou que, de 27 países analisados, o Brasil é o terceiro onde mais gente concorda que homens fazendo trabalhos domésticos diminuem a masculinidade. Cerca de 26% dos brasileiros consultados concordaram com essa afirmação. Para o psicólogo Eduardo Fonseca, alguns homens ainda resistem em abrir mão de privilégios históricos de gênero, como dividir as tarefas de cuidar da casa e da prole.

O levantamento da Promundo mostra, analisando sete países, que as mulheres passam de duas a dez vezes mais tempo que os homens realizando trabalhos não remunerados, voluntários e domésticos. Se os homens realizassem pelo menos 50 minutos a mais nos cuidados domésticos por dia, diz o relatório, a balança seria mais facilmente ajustada. Se a situação permanece como está atualmente, a equiparação financeira de gênero poderá durar mais de 200 anos.

A questão financeira acaba sendo usada por muitos homens para não estar com os filhos. No Brasil, de acordo com a pesquisa, 28% deles dizem que não podem sair mais com as crianças por precisar ir atrás de dinheiro. “Alguns homens se mantêm afastados, em suas zonas de conforto. Pais que desejam assumir essa paternidade participativa precisam abandonar esse local”, explica Eduardo Fonseca. O exercício da paternidade ativa requer quatro níveis. O primeiro é o prático, no qual o homem precisa cuidar e se preocupar com as necessidades e demandas do filho e estar atento às tarefas domésticas.

A presença emocional é o segundo nível, caracterizada pela construção do vínculo e a ligação emocional com o filho. O terceiro é a transformação pessoal, que passa por entender o papel e a responsabilidade de ser pai. O quarto nível é o social e passa por onde atuam os influenciadores digitais da paternidade: ajudar outros homens a se transformarem. Para que isso aconteça, entretanto, alguns homens ponderam que é preciso também que as mulheres participem da construção. Isto é, abram espaço para o exercício da paternidade.

 “O exercício depende, além do desejo do pai, da ‘autorização’ da mãe. Algumas mulheres centralizam e monopolizam esse cuidado”, pondera Eduardo Fonseca. “O aprendizado às vezes dói, mas a conexão estabelecida com os filhos é maior que os desafios”, sintetiza Livingstone dos Santos.

Maioria dos pais não tira qualquer licença-paternidade
Geraldo Lélis foi incentivado por outros homens a publicar nas redes. Hoje realiza eventos só para pais e discute como ampliar debate sobre igualdade de gênero. Foto: Andrea Leal/Divulgação

Desbloquear o poder do cuidado e inserir os homens no trabalho dentro de casa e na relação ativa com os filhos, elenca o relatório Situação da Paternidade no Mundo, requer rodar cinco chaves. Transformar as normas sociais e de gênero é apenas uma delas. A mudança passa por construir segurança econômica e física das famílias, ajudar os casais a serem parceiros, desenvolver a capacidade de cuidado dos pais e melhorar as leis e políticas públicas. Nesse sentido, a garantia de tempo para o exercício da paternidade é fundamental.

Em todo o mundo, 85% dos pais dizem que fariam qualquer coisa para se envolver nas primeiras semanas e meses de cuidado dos filhos recém-nascidos. No Brasil, esse percentual é de 82%. Porém, no país 27% dos homens não tira nenhum tipo de licença-paternidade, mostra o relatório da Promundo. Apenas 32% dos pais conseguem tirar os cinco dias previstos na legislação.

“No Brasil, a previsão da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) são cinco dias. Há também um programa do governo, o Empresa Cidadã, no qual os funcionários desses locais podem tirar até 20 dias. Isso vale para casais heterossexuais e homossexuais, e também para casos de adoção”, explica a presidente da Comissão de Direito do Trabalho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Pernambuco (OAB-PE), Marina Roma.

Com 11 anos de existência, contudo, o programa Empresa Cidadã só conseguiu sensibilizar 10% das empresas elegíveis. Apesar disso, a pesquisa Melhores Empresas para trabalhar no Brasil mostrou que o número de empresas participantes do levantamento que estão oferecendo licença-paternidade de 20 dias aumentou de 29% para 39% em um ano. Do ponto de vista de repercussão, essa mudança impacta na produtividade dos homens, na retenção de talentos e nos resultados financeiros das empresas.
 
ENTREVISTA
Eduardo Fonseca - Psicólogo clínico e professor do curso de Psicologia da Faculdade Frassinete do Recife

Como o exercício da paternidade mudou nas últimas décadas?
Até a década de setenta, existia uma separação muito nítida entre homens e mulheres no exercício dos papéis parentais no interior das relações familiares. As mães atuavam no domínio privado, cabendo a elas os afazeres da casa, a criação dos filhos e os cuidados com doentes e idosos. Cabiam aos homens, por sua vez, os papéis de provedores e protetores da família, ou seja, assumir a responsabilidade de prover o sustento material e assegurar a proteção física e moral de todos (as). Os pais eram as principais figuras de autoridade da família, a obediência era baseada no medo e nos castigos físicos. Alguns eram frios e distantes emocionalmente dos rebentos, tinham medo da perda dessa autoridade com a aproximação e trocas afetivas. Com a modernização da família, as tarefas de cuidar e educar os rebentos passam a ser compartilhada pelo casal. As exigências das mulheres por equidade de gênero na vida social em geral e na família, em particular, pressionaram os homens a mudarem os papéis masculinos, aumentando a responsabilidade no cuidado da prole e nas tarefas domésticas. Os homens se tornaram paulatinamente mais presentes na vida cotidiana da família assumindo, em conjunto com a esposa, as exigências da vida privada. 

O que é a chamada paternidade participativa?
Denominamos de paternidade participativa quando os pais vivenciam uma relação próxima e ativa no cuidado e na educação de seus filhos. O exercício dessa paternidade vem ajudando a romper com os modelos tradicionais de masculinidade. Os homens compreenderam que ser pai não é simplesmente ser ajudante da mãe, coadjuvante no processo de criação das novas gerações. A paternidade implica em assumir responsabilidades no cuidado das crianças em suas demandas diárias: higiene, alimentação e educação. Procuraram, então, ter disponibilidade física e psicológica para atender as solicitações e necessidades dos filhos. Essa disponibilidade não ocorreu apenas por obrigação ou pressão da esposa, mas por satisfação e prazer no exercício dessa paternidade ativa.

O que o exercício dessa paternidade participativa trouxe aos homens?
Essa nova paternidade tem contribuído para tornar os homens mais próximos do universo dos afetos e do cuidado. Essa experiência de envolvimento afetivo no cuidado filial tem ajudado a despertar nos homens a sensibilidade, a ternura e o carinho. O convívio mais próximo com a prole fortalece os laços paterno-filiais e aumenta a intimidade entre pais e filhos. 

Quais os desafios enfrentados pelos pais para assumir essa paternidade participativa?
Alguns homens não conseguem abrir mão de privilégios históricos de gênero. Uma vez que a tarefa de cuidar da prole esteve historicamente sob a responsabilidade feminina, evitam ao máximo o envolvimento com mundo privado da família, desresponsabilizando-se do cuidado e educação dos filhos. Por outro lado, o exercício da paternidade participativa depende, além do desejo do pai, da “autorização” da mãe. Algumas mulheres centralizam e monopolizam esse cuidado, figurando como necessárias e insubstituíveis. O espaço doméstico é também lugar de poder. Dificultam a entrada dos pais nessa relação e justificam com a incapacidade deles em cuidar dos rebentos. Essa nova postura assumida pelo pai acarreta mudanças nas relações paterno-filiais, desnaturalizando os lugares e os papéis tradicionais de gênero no casamento e na família. 

Quais os benefícios dessa paternidade participativa para as mulheres/ mães?
No contexto atual, as mulheres têm dificuldades de conciliar sozinhas as demandas de cuidado e de educação de crianças e jovens com o cumprimento das obrigações profissionais. Antes desse envolvimento masculino, a carreira feminina era obstaculizada pela sobrecarga de trabalho e excesso de responsabilidade decorrente da dupla jornada. As mulheres viviam num ritmo de vida alucinante e exaustivo, divididas entre as atividades laborais, os estudos e a vida familiar. Muitas vezes, essa sobrecarga de obrigações gerava adoecimentos. Essa corresponsabilidade tem contribuído decisivamente para o crescimento profissional e a emancipação econômica das mulheres. No consultório, tenho observado, que maridos mais cúmplices na criação dos rebentos permitem que as mulheres se dediquem plenamente à sua carreira profissional. Desse modo, a paternidade participativa melhorou a qualidade de vida das mulheres e os indicadores relacionados com a saúde feminina. 
 
 


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