Ano novo é tempo de renovação. De olhar para trás, refletir sobre o que passou e planejar dias diferentes. Mais do que um clichê de Réveillon, o recomeço pode ser um verdadeiro renascimento. Bruno*, Alexandre e André Luiz sabem que mudar pode ser ressignificar a própria vida. O passado deles é marcado por erros de grande impacto social. Falhas reconhecidas e hoje instrumentos de transformação. Para isso, foi necessário não só vontade própria, mas um olhar acolhedor da sociedade.
Bruno traficava drogas na adolescência, foi preso, condenado, porém recebeu a chance de cumprir a pena sem estar atrás das grades. Alexandre saiu de uma festa embriagado, pilotando uma moto e sofreu uma colisão, engrossando as estatísticas da epidemia de motociclistas acidentados. Em 2017, 73% das pessoas que foram atendidas em alguma unidade de saúde por se envolverem em acidentes de trânsito eram motociclistas. Agora, Alexandre é educador da Operação Lei Seca.
André Luiz foi condenado pela Lei Maria da Penha e passou a prestar serviços comunitários em Igarassu e Abreu e Lima. Hoje, é considerado exemplo para o processo de ressocialização de homens agressores. Em Pernambuco, de janeiro a novembro, 30.182 mulheres foram vítimas de violência doméstica e familiar.
O estado registrou 10% mais assassinatos de mulheres do que em 2017. Também se chocou com mortes no trânsito em função da alcoolemia. O tráfico de drogas, por sua vez, segue recrutando jovens, especialmente os vulnerabilizados pela pobreza e desagregação familiar. Um dos caminhos para evitar que essas tragédias sociais sigam se repetindo é a conscientização.
Bruno, Alexandre e André Luiz se tornaram ferramenta nesse processo educativo. Dois deles cumprindo penas alternativas. Neste ano, a Vara de Execução de Penas Alternativas (Vepa) acompanhou 3.291 pessoas em cumprimento de alternativas penais, na Região Metropolitana do Recife. São pessoas que receberam uma nova chance e mostram que é possível sempre recomeçar.
Do calvário à redenção para uma nova vida
Aos 15 anos, deixou a escola porque o pais não podiam mais pagar uma unidade particular e ele se recusou a ir a uma instituição pública. Aos 18, começou a usar com frequência drogas “da elite”. Ecstase, LSD, Haxixe, Skunk. Aos 19, virou intermediário entre os entorpecentes e os amigos de balada. Aos 20, estava sentado no chão úmido do Cotel, fumando maconha e tentando sobreviver ao sistema carcerário. Cada capítulo dessa história rende um rótulo, mas o fim dela vai além do que o preconceito permitiu enxergar até agora. Ele não morreu nem ficou pior. É o melhor aluno de uma turma de direito de uma universidade particular do Recife.
Até hoje, Bruno* se pergunta por que entrou para o crime. Em casa, não faltava amor ou dinheiro. Talvez, fosse uma questão de viver na adrenalina, experimentar a aventura. Depois de aceitar o convite do amigo para começar a vender drogas, foram dois anos comercializando em raves e festas de classe média e alta da cidade. A última vez foi perto do carnaval. Recebeu uma ligação e saiu de casa com 200 pontos de LSD. Encontrou uma equipe da polícia antes de cruzar a esquina. Naquele dia, em fevereiro de 2014, começou o calvário. E também a redenção.
Bruno foi levado ao presídio e percebeu, ainda na porta de entrada, como seria difícil superar aquele ambiente sem sequelas. Viveu dias de tristeza, dias de solidão, dias em que viu a morte acontecer ao lado, brutal e desumana. Dormia com um homem de 22 homicídios ao lado. Viveu 94 dias “no inferno”, até receber a liberdade provisória, por ser réu primário e ter endereço fixo. Na justiça, foi condenado a cinco anos, mas teve a pena revertida em serviços alternativos. Assim, conheceu a chance de mudar.
Ele começou a trabalhar na Vara de Execução de Penas Alternativas, digitando documentos e ajudando a organizar os processos. Rememorou as épocas de bom aluno na escola e de trabalhos técnicos de informática, iniciados dois anos antes de conhecer o tráfico. Mais do que tudo isso, foi tratado como ser humano. Sem indiferença ou estigma. “Você vê todas aquelas coisas boas da vida. Pessoas educadas, com instrução cultural. Vê o esforço deles, fica observando”, lembra. “Lá, eu era tratado como funcionário, tinha acolhimento”, acrescenta.
A carga horária mínima era de oito horas semanais e a máxima de 16, mas de tão empolgado Bruno pediu autorização para ir todos os dias. Ficou próximo ao juiz e aos demais. Aproveitava para ler os processo e assim trocou o antigo sonho de fazer medicina pelo de entrar no mundo jurídico. Fez supletivo, Enem e no começde 2017 ingressou no ensino superior.
Por ironia do destino, o debate da primeira aula foi sobre o pagamento de auxílio-reclusão. Na sala, ele foi o único a defender. “Eu vi o outro lado. Na maioria, eram pessoas com desequilíbrio familiar, histórico de fome, violência em casa. São pessoas que, se você der uma chance, consegue extrair algo delas”, diz. Um colega de turma reconheceu, no momento da discussão, Bruno. É policial e estava na delegacia quando ele foi preso.
Bruno trabalha e com o próprio dinheiro paga a faculdade. Quer passar em um concurso e garantir estabilidade para terminar o curso. Depois, pretende ser advogado na área penal. “É melhor aproveitar o máximo possível do potencial de cada um do que jogar naquele inferno e deixar ao Deus dará”, justifica. Na faculdade, no máximo cinco pessoas sabem do passado dele. O medo da rejeição acompanha os passos apressados e a voz lenta de Bruno. O colega policial é o companheiro mais próximo. A determinação, a amiga mais fiel. Na contramão do senso comum, o jovem de classe média traficante é um homem ressocializado.
O poder da transformação dentro de nós
A separação da primeira esposa foi conturbada. Há anos, o empresário André Luiz Gomes, 47, vivia em um relacionamento marcado por ameaças, agressões verbais e brigas. Os dois filhos, então com menos de 18 anos, presenciavam as discussões dos pais. Quando o primogênito chegou à maioridade, o casal decidiu se separar. Foi quando as brigas ficaram ainda piores. Em uma manhã de 2016, a ex-mulher entrou na loja de André e eles discutiram. Ela tentou arrancar um cordão de prata do ex-marido, que disse à Justiça ter apenas se defendido do “ataque” da ex-companheira.
A briga chegou aos tribunais, e André foi condenado a prestar serviços comunitários e participar de um projeto com rodas de diálogos em Igarassu. “Foi um choque receber a sentença, mas, depois, vejo como foi positivo passar pelo projeto. Pude trabalhar como voluntário no Conselho Tutelar de Abreu e Lima e aprendi muito sobre a Lei Maria da Penha, meditação e diálogo em família. Muitos homens chegam revoltados nas reuniões e saem felizes por estarem contribuindo para a sociedade”, diz o empresário.
Como André, até dezembro de 2017, 314 homens autores de violência foram atendidos e acompanhados pelo projeto Transformando Nós, da Vara Regional de Violência Doméstica e Familiar contra Mulher. Desses, 245 cumprem medidas protetivas de urgência e 69 são sentenciados beneficiados pela suspensão condicional da pena. “De forma geral, os participantes costumam afirmar que, após sua participação nos grupos reflexivos, se sentem mais tranquilos, mais orientados sobre seus direitos, sabendo a quem recorrer quando necessário, ‘pensando mais antes de agir’. Isso implica diretamente no aumento do auto-domínio, do controle emocional e do seu próprio empoderamento”, explica a pedagoga da Vara, Juliana Simões.
De acordo com Juliana, os temas dos encontros do projeto foram escolhidos após uma análise dos processos que tramitam na Vara, com o objetivo de registrar os motivos mais comuns para que se cometam crimes de violência doméstica. Entre eles, está o uso abusivo do álcool. “A violência é uma tentativa de comunicação distorcida e se baseia em crenças limitantes que, por sua vez, influenciam diretamente a autopercepção, a visão que tem dos outros e do mundo. Com base em estudos científicos sobre comunicação não violenta, estimulamos que a comunicação entre os casais se baseie no acordo, no diálogo e na generosidade afetiva”, ressalta.
Vítima de trânsito defende Lei Seca
Era só mais uma festa. Mais uma vez. Não teria problema. Imagina, nunca aconteceria com ele. Muito menos tão perto de casa, a um quilômetro e meio. Quando Alexandre Pereira tomou o último gole, saiu do bar embriagado e ligou a motocicleta, estava munido da convicção de toda pessoa que insiste em misturar álcool e direção. Não era a primeira vez daquela combinação, mas seria a última. Duas ruas antes do destino final, ele cochilou e despencou do veículo. Bateu o corpo sobre o meio-fio e, mesmo com uma fratura exposta na tíbia, tentou levantar. Botou toda a força possível, fincou as unhas no barro e não conseguiu nem se ajoelhar. Alexandre estava paraplégico.
Já faz 13 anos daquela noite, mas o arrependimento é imediato todas as vezes em que ele rememora os fatos. “Eu era acostumado a beber e dirigir. Pegava até rodovia. Já tinha chegado sem nem lembrar o caminho. Assumi várias vezes o risco de morrer ou matar outras pessoas. Foram 18 dias de internação, duas cirurgias e dois anos remoendo dentro de casa a própria dor. Dormindo na sala, porque os quartos ficavam no primeiro andar. E acordando de madrugada com o barulho das lágrimas da mãe. Alexandre pensou em desistir, acabar com a própria vida, até aceitar a condição de pessoas com deficiência. Passado o desespero, decidiu usar a própria história para salvar vidas.
Ele é um dos educadores da Operação Lei Seca. A missão, como gosta de chamar, é acionar o alerta da população sobre as consequências da alcoolemia ao volante e asism promover uma reflexão. “A gente quer chegar ao coração das pessoas”, explica. Desde que foi criada, há seis anos, a Operação Lei Seca trabalha com vítimas e vitimados de trânsito na equipe de educação. Dos 10 integrantes, três provocaram acidentes por causa de bebida e outros dois foram vítimas.
O grupo trabalha nas blitz de fiscalização, palestrando em escolas e empresas e panfletando em bares e locais públicos do estado. Neste ano, foram 867 ações. Para a coordenadora de educação da operação, Alice Borges, trazer as cadeirantes para as atividades multiplica a força da mensagem. “Eles fazem mais do que falar, contam a própria história.” Alexandre diz não ser fácil, principalmente quando precisa lidar com pessoas de alto poder aquisitivo em bares. “Muitos não querem nos receber, dizem que afastamos a clientela”, lamenta.
No Brasil, um em cada quatro motoristas dirige após consumir álcool. Em seis anos de Lei Seca em Pernambuco, 40 mil pessoas (1,8% do total de abordados) foram autuadas por alcoolemia. Neste ano, foram aplicadas no estado 4,9 mil multas, um percentual de 1,4%. Em dezembro, foi sancionada no país a Lei 13.546, que aumanta a pena para motoristas que cometem homicídio ou causam lesão grave ou gravíssima ao dirigir alcoolizados. A pena atual é de reclusão de 5 a 8 anos. As regras entram em vigor em 120 dias.
Entrevista >> Flávio Fontes, juiz titular da Vara de Execução de Penas Alternativas
Qual o intuito e efetividade das penas alternativas no processo de ressocialização?
A Política Nacional de Alternativas Penais define as alternativas penais como mecanismos de intervenção em conflitos e violências, diversos do encarceramento, no âmbito do sistema penal. É uma orientação para a restauração das relações e promoção da cultura da paz, a partir da responsabilização com dignidade, autonomia e liberdade. Fazem parte do escopo: conciliações, mediações e programas de justiça restaurativa realizados por meio dos órgãos do sistema de justiça; medidas cautelares diversas da prisão, exceto o monitoramento eletrônico; medidas protetivas de urgência; transações penais; suspensões condicionais do processo; e condenações criminais em que a pena é suspensa ou substituída por restritivas de direitos. O artigo 44 do Código Penal Brasileiro apresenta critérios objetivos e subjetivos a serem observados na aplicação das restritivas de direito: quando for aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo; quando o réu não for reincidente em crime doloso; quando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente. Porém, pesquisa realizada pelo Instituto Latino Americano das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Ilanud), em 2006, demonstrou que o excesso de discricionariedade (liberdade concedida aos administradores públicos, para agirem de acordo com o que julgam conveniente e oportuno diante de determinada situação) dos juízes é fator que dificulta do ponto de vista formal a garantia de aplicação sistemática da pena alternativa. A lei deixa margem para interpretações que permitem ao juiz a não aplicação. Se um condenado não preenche os requisitos objetivos previstos na lei, não terá sua pena substituída. Contudo, ainda que atenda aos mesmos requisitos, o juiz poderá, baseado em elementos subjetivos, negar a substituição. Os requisitos previstos no artigo 59 do Código Penal encarnam a possibilidade para a não aplicação a partir de análises de cunho subjetivo feitas no momento da aplicação da pena pelo juiz.
Punição significa necessariamente prisão?
É importante situar que a associação entre punição e prisão é característica de uma justiça criminal baseada em um modelo dissuasório, tipo de intervenção punitivista que propõe alcançar dois resultados: a reprovação do ato a partir da imposição de uma pena à pessoa que infringiu a lei e a prevenção de novos delitos pelos membros da sociedade, que se sentiriam desestimulados a delinquir a partir da verificação da punição dos infratores. O crescimento exponencial da população criminal no Brasil está aí para demostrar que, prender, sempre mais e mais, não desestimula a reincidência e tampouco evita que novos crimes sejam cometidos e que novas prisões sejam efetuadas. Na Vepa (Vara de Execução de Penas Alternativas), acreditamos que existem outras formas de se praticar justiça: primando pela dignidade, liberdade e protagonismo das pessoas envolvidas em conflitos e violências. Tentamos promover uma mudança dessa cultura punitivista tão cristalizada. E isso não significa passar “a mão na cabeça” de quem cometeu um crime. Pelo contrário. Confiamos ser possível trabalhar a responsabilização das pessoas que cometeram crimes, acreditando que são capazes de transformar suas trajetórias de vida e valorizando suas potencialidades. Para isso, investimos no acesso aos direitos sociais, na manutenção de seus vínculos familiares e comunitários e, em especial, na restauração dos danos e das relações sociais. Dados do acompanhamento psicossocial da Vepa indicam uma taxa de apenas 4,5% de reingresso no sistema de justiça criminal durante o período de cumprimento da medida alternativa, por motivo de prisão em flagrante, o que vai de encontro a resultados de pesquisas que demonstram que os índices de reincidência quando os réus são submetidos a sanções não privativas de liberdade são inferiores aos de quando são privados de liberdade.
Que tipo de crime leva ao cumprimento de penas alternativas?
No âmbito da Vepa, atualmente, o crime mais frequente está previsto na Lei de Drogas (lei 11.343/06). O tráfico de drogas privilegiado (quando o réu é primário, tem bons antecedentes, não se dedica às atividades criminosas nem integra organização criminosa), representa 35% do total de medidas em execução. Logo em seguida, com 25%, estão crimes contra o patrimônio, dentre os quais se destacam furto, estelionato e receptação. Fecha a lista dos três primeiros colocados os crimes contra o sistema nacional de armas (porte e posse de arma de fogo), com 15%. Porém, além destes, as alternativas penais podem ser aplicadas em casos de crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, crimes de trânsito (dirigir sob efeito de álcool, homicídio culposo na direção de veículo automotor, fuga do local de acidente), crimes ambientais, crimes contra a administração pública, a exemplo de corrupção passiva e ativa, crimes tributários, dentre outros.
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