Vida Urbana

Discriminação dentro de ônibus desperta debate sobre intolerância religiosa

Sacerdote da jurema foi execrado por evangélicos e denunciou o caso ao Ministério Público

Alexandre L'Omi L'Odò. Foto: Rafael Martins/DP

"A maioria do nosso povo abaixa a cabeça e guarda para si quando nos agridem. Eles usam adjetivos para desqualificar nossa tradição, sacerdócio e nossos símbolos religiosos. Eu não saí de casa para brigar com ninguém, mas reagi. Tive que enfrentar isso como os velhos guerreiros malunguinhos enfrentavam", desabafou.

No dia 09, por volta das 20h, ele entrou num ônibus que fazia a linha TI Xambá/Encruzilhada, no Terminal de Xambá, acompanhado do afilhado de jurema Henrique Falcão. Os dois seguiam para a casa de axé Ilé Iyemojá Ògúnté, em Água Fria. Mas, segundo o juremeiro, ao entrar no ônibus, um vendedor de açaí começou uma pregação e instigou os evangélicos que estavam no coletivo contra ele. Teria dito, inclusive, que sabia da existência de um grande terreiro de "macumba" por trás da estação, o Terreiro Xambá, comandado por "um negão pai de chiqueiro", citando o babalorixá Ivo de Xambá. 

"Ele falou do meu povo e de um sacerdote. Fui diretamente atingido e reagi. Ainda me chamou para brigar dizendo que o demônio não conseguiria atingir um filho de Deus. Sou pacifista, mas não abaixo minha cabeça. Rebati com argumentos convincentes sobre o desrespeito dele até mesmo aos princípios da religião que segue, que diz que não devemos julgar. Algumas pessoas concordaram, mas outras se manifestaram até com o Espírito Santo contra mim", detalhou. A confusão foi tamanha que até mesmo o vigilante do Terminal Integrado foi até o ônibus. "Seguranças e fiscais da estação mandaram que nos retirássemos. Óbvio que também os rebati dizendo que paguei a passagem e que eu era a pessoa que estava sendo violentada". Segundo Alexandre, a discussão só terminou quando ele chegou ao seu destino.

Indignado, o juremeiro publicou um vídeo que fez das ofensas no Facebook no último 12. A postagem alcançou grande repercussão e - até a noite desta sexta-feira - tinha mais de 500 compartilhamentos. Alexandre L'Omi L'Odò, então, levou a denúncia para o Ministério Público. O caso foi registrado nessa quinta-feira. O MPPE, por meio da Promotoria de Justiça de Transporte, colheu o depoimento dele e vai instaurar um procedimento investigativo. No prazo de 30 dias, o caso será analisado para que sejam tomadas as medidas cabíveis. O promotor de Justiça Humberto Graça foi designado para a ocorrência.

Denúncia registrada no MPPE

Regulamentação do Grande Recife

De acordo com o anexo 15 do Regulamento do Sistema de Transporte Público de Passageiros da Região Metropolitana do Recife (STPP/RMR), não é permitida a atividade de vendedores ambulantes dentro dos veículos, assim como é proibido qualquer usuário de falar em voz alta (seja para vender, anunciar, pedir, pregar religiões, etc) de modo que perturbe o sossego dos demais usuários.

CASO REACENDE DEBATE QUE ANDA À ESPREITA NA SOCIEDADE: A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

Preconceito religioso foi tema de especial do Diario: Povos de Santos.http://diariode.pe/f0uc. Foto: Victor Germano

Para o psiquiatra Carl Jung, o papel dos símbolos religiosos é dar significação à vida do homem. A partir dessa consciência de fé, florescem as mais diversas crenças enraizadas por influências do meio e da colonização pela qual ele se formou. De acordo com a doutora em teologia especialista em políticas públicas e direitos humanos e uma das fundadoras do Comitê Nacional de Diversidade Religiosa, Marga Janete Ströher, no Brasil, a intolerância religiosa sempre existiu.

"Nossa colonização já veio acoplada a um projeto político e religioso. Há 516 anos, os índios não tiveram sua religiosidade reconhecida. Os povos ciganos já vieram expulsos da Europa. Os africanos foram escravizados. Lidamos com isso como convivemos com uma suposta democracia racial. Você só ouve falar quando chega a níveis extremos, com incêndios criminosos em terreiros e assassinatos".

A intolerância no país tem aumentado?

Eu trabalhei por quatro anos acompanhando de perto as denúncias do Disque 100, o Disque Direitos Humanos. Posso dizer que tem aumentado de forma sistemática e cada vez mais agressiva. O fascismo que cresce dentro do nível político e econômico também se transporta para o nível das relações e se prolonga pelo país inteiro. Para termos uma ideia, desde quando começamos a divulgar o Disque 100, de 2012 até 2013, houve um aumento de 600% no número de denúncias.

Quem são as principais vítimas da intolerância religiosa?

A gente sabe que em primeiro lugar estão as pessoas de matrizes africanas, indígenas ou afro-indígenas. Mas também existem os muçulmanos que são diretamente vinculados ao terrorismo porque as pessoas não têm discernimento sobre o que é religião e o que é posição política radical. E ainda temos ateus e agnósticos nos país, cerca de 8%, que sofrem porque são julgados como sem caráter por não acreditar em Deus.

Quem são os principais agressores?

É complicado você dizer isso, mas, de acordo com as denúncias, por via de regra são seguidores de religiões fundamentalistas, cristãos evangélicos. É importante deixar claro que não é apenas uma intolerância religiosa. Ela é um componente muito forte de racismo atrelado à violência. Não estamos mais apenas no nível do desrespeito. Chegamos ao ponto crítico de assassinatos.

Onde as agressões mais acontecem?

Por incrível que pareça, muitos casos acontecem com crianças ainda nas escolas. Muitas são discriminadas e ofendidas verbalmente por estarem com vestimentas ou guias, por exemplo, que fazem parte dos rituais das tradições. Mas acontece em todos os lugares. Nas ruas, em supermercados. Os terreiros mesmo, considerado lugares sagrados, têm sido apedrejados e destruídos pelo país inteiro.

Essa violência motivou a criação do Comitê Nacional?

A motivação maior da criação do Comitê de respeito à diversidade religiosa veio a partir das denúncias que a gente recebia através do Disque Direitos Humanos. Mas, além disso, também recebíamos muitas informações nas visitas que fazíamos pelo país e decidimos criar algo para concentrar ações e reverter essa história.

Qual a missão do comitê?

O comitê é paritário e funciona em parceria do Governo Federal com a sociedade civil. Ele serve para ampliar o debate e fomentar a implantação de políticas públicas para atender essa demanda crescente. Ele tem essa função importante de trabalhar metodologias de conscientização.

Como as pessoas podem denunciar?

Se você se sentiu desrespeitado devido às crenças que segue, procure a delegacia mais próxima, registre a ocorrência. Vá ao Ministério Público, denuncie. Por todo o país existem órgãos de assistência e acolhimento para vítimas desse tipo de violência.

"É preciso problematizar a questão. Não é a primeira vez que isso acontece. E isso é fruto de um proselitismo religioso. O número de evangélicos vem crescendo e eles são doutrinados a pensar que apenas a religião deles é a correta. Muitas igrejas estão bombardeando ideologias racistas e preconceituosas sob uma perspectiva teológica que o Deus deles é melhor que o dos outros e formam pessoas preparadas para agredir nosso povo pelas ruas. É preciso uma intervenção enérgica de conscientização para que crimes de intolerância parem de acontecer. Sei que é uma ferida aberta e foi preciso que eu colocasse o dedo para ampliar o debate. Mas nossos terreiros estão sendo incendiados, os filhos de santo têm apanhado nas ruas. Se esse pensamento fascista se expandir, daqui a pouco vamos derramar sangue por religião", ponderou o juremeiro Alexandre L'Omi L'Odò.

Central de Atendimento Disque 100

Ligação gratuita 24 horas: 100

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