Vida Urbana

Rio Capibaribe tem saúde abalada mas está vivo

Estuários do rio recebem despejos sistemáticos dos esgotos da cidade, cuja rede remonta a 1915. A biodiversidade, no entanto, continua sua luta por oxigênio e espaço

Foto: Brenda Alcântara/DP/ D.A.Press

 

"Na paisagem do rio

difícil é saber

onde começa o rio;

onde a lama

começa do rio;

onde a terra

começa da lama;

onde o homem,

onde a pele

começa da lama;

onde começa o homem

naquele homem"

 

 

 

"Os estuários do Capibaribe e do Beberibe estão moribundos, respirando por aparelhos”. A dura afirmação, do professor da Universidade de Pernambuco (UPE), biólogo e doutor em Oceanografia Clemente Coelho retrata a crítica condição dos cursos d’água que se confundem com a história do Recife. E não há exagero na metáfora. Análises de rotina no Baixo Beberibe mostram que ali a água é anóxica - nível zero de oxigênio. De acordo com especialistas, se algo verdadeiramente eficiente não for feito em relação ao despejo ininterrupto dos esgotos do Recife nos rios, em breve, não haverá mais o que salvar.

Em 1950, no poema O Cão sem Plumas (reproduzido no início desta matéria), João Cabral de Melo Neto já falava sobre um Capibaribe consumido pela imundície da capital e dos miseráveis que dele viviam. Desde então, pouquíssimo foi feito. “Há décadas os estuários da Região Metropolitana do Recife sofrem com a falta de saneamento. Nos últimos 30 anos, praticamente não houve evolução nesse serviço. O esgoto ainda está sendo lançado nos rios com pouco ou nenhum tratamento”, lembra Clemente. Para se ter uma ideia do tamanho do déficit, a rede de esgotos do Recife é basicamente a mesma que foi implantada pelo engenheiro Saturnino de Brito em 1915, sendo o Sistema de Peixinhos a maior ampliação já realizada.

Treinador da equipe de remo do Sport, Bruno França vê a degradação diária do rio. Foto: Brenda Alcântara/DP/ D.A.Press

Com 40 anos de pesca, Severino reclama do aterramento e da falta de peixe na rede. Foto: Hesíodo Góes/DP/ D.A.Press

E que não se pense que o sumiço dos peixes é um fato ignorado. É somente um aspecto do quadro urgente que, direta ou indiretamene, vem sendo objeto de várias pesquisas, como a conduzida pelo professor da UFPE e oceanógrafo Augusto Schettini. Ele coordena um grupo que estuda o sistema estuarino do Capibaribe, que como explica, “inclui o canal principal do Capibaribe, a Bacia do Pina, os tributários menores como Beberibe, Jodão, Pina e Tejipió. Então, a água que se movimenta por toda essa área é nosso objeto de estudo”.

Como parte da rotina de trabalho, a equipe de Schettini conduz medições semanais para coletar algumas variáveis físicas e químicas, além de indicadores biológicos como a quantidade de oxigênio dissolvido. “Temos uma sonda que mede a concentração de oxigênio e fornece o nível de saturação. Num ambiente saudável, esse nível de saturação é de 70%, 80%, 90%. O que observamos é que em quase todas as medições que fazemos em trechos do estuário encontramos condições de ausência de oxigênio.”

Crianças nadam no Capibaribe sem saber o que representa banhar-se em águas com nível zero de oxigênio. Foto: Hesíodo Góes/ DP/D.A.Press

Durante períodos de estiagem, o esgoto despejado nos leitos dos rios que alimentam a biodiversidade da região chega a representar a maior parcela de seu volume. Não por acaso, a vida costuma se concentrar nos trechos mais próximos do mar, onde as marés altas bombeiam nutrientes que servem de ponto de partida para a cadeia alimentar. “Na porção mais baixa, onde há mais água salgada, a situação não é tão grave. Encontramos valores mais dentro da normalidade. Mas em um trecho muito significativo, a qualidade da água é muito baixa. Não somente pela baixa saturação de oxigênio, mas também pela quantidade de lixo”, explica Schettini.

A longo prazo, a vida sempre dá um jeito de seguir em frente - até agora, superou todos os desastres em escala global -, mas ela vem enfrentando uma batalha complicada por aqui. A duração do quadro de anoxia de parte das águas dos estuários observada na pesquisa de Schettini é uma prova disso. “Estamos conduzindo medições semanais há algum tempo, passando por diferentes condições climáticas e o que podemos dizer é que a condição das águas não está melhorando. Não vimos muita mudança. Altera a turbidez, a quantidade de clorofila, mas os níveis de oxigênio sempre são muito baixos ou inexistentes.”

Uma batalha travada pela natureza

Por mais que boa parte da população ainda não enxergue ou sinta os efeitos da acelerada deterioração da saúde dos rios da RMR, um dia essa conta vai chegar para todo mundo. Talvez por (ainda) serem gratuitos, os serviços ambientais sejam subestimados, mas há um bom número deles. “Vão desde contribuições culturais - grandes obras literárias e musicais aqui do estado são exemplos disso - ao aprisionamento do carbono da atmosfera”, resume Clemente Coelho. O emaranhado de raízes da vegetação de mangue, que recuperou as margens dos rios desde a implementação do Código Florestal em 1965, funciona como um filtro biológico, retendo boa parte dos sedimentos, material orgânico e lixo das águas. “Naturalmente, o mangue voltou a ocupar o seu lugar. Isso é mais um serviço ambiental prestado aos centros urbanos. A vegetação empresta a beleza cênica em bairros sem arborização pública ou parques”, acrescenta Clemente.

Emaranhado de raízes da vegetação do mangue, que vem recuperando as margens dos rios desde 1965, funciona como um filtro biológico. Foto: Hesíodo Góes/ DP/ D.A.Press

Mas apesar de terem recuperado as margens dos rios, os manguezais perderam quase todo o seu território. E isso fez com que aspectos importantes dos serviços ambientais tenham se perdido. “Os manguezais são berçários de incontáveis espécies, mas com as águas poluídas, os animais não conseguem completar o ciclo de vida”, lamenta o biólogo. Além disso, por mais que os indivíduos se esforcem, a quantidade de vegetação não é suficiente para lidar com todo o carbono produzido pela cidade. “As árvores absorvem parte do material orgânico dos esgotos e do carbono da atmosfera. Por isso, a gente vê enormes árvores de mangue quando cruza a Via Mangue ou passa pela Torre. Mas temos um excedente. O manguezal não dá conta de tudo isso. Não é suficiente”.

Enquanto tem fôlego, a biodiversidade luta por espaço em meio ao sufocante tecido urbano da cidade. Não são raros os encontros entre moradores das Graças e a família de capivaras que busca refúgio na beira do Capibaribe. Assim como os relatos da presença de jacarés em trechos dos cursos d’água e a marcante presença das aves, principalmente nas áreas mais próximas do mar. Em julho, uma visita inesperada alimentou a esperança dos que sonham com a recuperação desse meio ambiente: Clara e Natália, duas peixes-boi reintroduzidas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), no município de Porto das Pedras, Litoral Norte de Alagoas, passaram quase um mês no estuário do Capibaribe.

“Elas se enfiaram no Parque dos Manguezais, passaram pelo Coque, andaram em Brasília Teimosa”, lembra Clemente, sorrindo. “As pessoas vibraram com elas e algumas até arriscaram um contato, mas são animais protegidos por leis e não devem ser molestados. De qualquer forma, acho que Clara e Natália deixaram uma mensagem importante. Muita gente se mobilizou e entendeu que o Capibaribe tem muita vida. Acho que elas vieram para passar essa mensagem. O Capibaribe tem vida e ela precisa de ajuda. Espero que elas deixem saudade e que num futuro não muito distante peixes-boi selvagens escolham visitar nossoas águas também. Espero que tenha sido um ponto de partida para uma necessária mudança, porque se não fizermos algo, veremos os rios morrerem.

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