Vida Urbana

A incômoda relação entre dor de dente e desigualdade social

Pesquisa mostra que, além da precariedade na higienização e da falta de uma alimentação saudável, estresse gerado pela desassistência social agrava os problemas odontológicos

Bianca Santiago foi a campo na Paraíba, em 2013, para confirmar a tese de que a saúde bucal não difere da saúde geral, ambas influenciadas pelo contexto social em que o indivíduo está inserido . Foto: Arquivo pessoal

A saúde bucal é influenciada pelo contexto social no qual o sujeito está inserido. É nisso que acredita a odontóloga e doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz), Bianca Santiago. Em 2013, ela coordenou um estudo na Paraíba que revelou uma relação entre a dor de dente e as desigualdades sociais. A tese mostrou que a chance de relatar dor dentária foi 52% menor em pessoas que moravam em locais com alto capital social de vizinhança e que, entre os escolares, a chance de relatar dor foi 3,46 e 4,5 vezes maior entre aqueles que moravam, respectivamente, na segunda e na quarta áreas com maiores taxas de homicídio na capital João Pessoa. Para Bianca, que também é docente do Departamento de Clínica e Odontologia Social da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), o contexto de violência, menor suporte social e baixo empoderamento expõe os indivíduos a níveis altos de estresse, o que agrava problemas de saúde, além da precariedade da higiene bucal e da falta de uma alimentação saudável. Confira abaixo os principais trechos da entyrevista que a especialista concedeu ao Diario.

As conclusões alcançadas pela pesquisa mostram que a saúde bucal também sofre influência do contexto social no qual o indivíduo está inserido. Como isso acontece?

A saúde bucal não difere da saúde geral nesse sentido e ambas são influenciadas pelo contexto social em que o indivíduo está inserido. A relação existente entre as condições sociais, econômicas e os diferentes riscos para muitos agravos de saúde, bem como o acesso a serviços de saúde, emerge para o conceito de estratificação social como determinante fundamental das condições de saúde das populações. Nas últimas décadas, observou-se grande avanço no estudo de como a maneira de organização e desenvolvimento de uma determinada sociedade influencia a situação de saúde da referida população. No entanto o maior desafio dos estudos das relações entre determinantes sociais e saúde consiste em estabelecer uma hierarquia de determinações, entre os fatores mais gerais de natureza social, econômica, política e as mediações através das quais esses fatores influenciam sobre a situação de saúde da população nos níveis de grupo e individual, uma vez que essa relação não é uma simples analogia direta de causa-efeito. No caso do estudo desenvolvido em 2013 na Paraíba, pelo Grupo de Estudos em Odontopediatria e Clinica Integrada (GPOCI), propusemos algumas hipóteses explicativas, dentre elas de que indivíduos que residem em áreas mais violentas, com menor suporte social e baixo empoderamento estariam sujeitos a altos níveis de estresse que, por si só, podem contribuir para o desenvolvimento de agravos a sua saúde, além de também não atentarem para cuidados simples e cotidianos como a higiene bucal e uma dieta saudável, o que agravaria suas condições de saúde bucal.

Divulgada em junho, a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), do Ministério da Saúde/IBGE apontou que 11% dos brasileiros não possuem sequer um dente na boca. Foto:Public Domain/FAQ

Outro achado do estudo apontava quanto mais emponderada e consciente a vizinhança, menor a incidência de cárie. Por que essa relação acontece e como esses resultados podem e devem pautar estratégicas de políticas públicas?

Acredita-se que as pessoas que residem em vizinhanças mais conscientes, empoderadas e coesas, estão inseridas em um contexto com menos estresse e no qual a difusão de hábitos e comportamentos saudáveis é facilitada, propiciando a adoção de medidas cotidianas que favorecem a saúde como um todo, incluindo a saúde bucal. As políticas públicas não podem mais estar focadas apenas na mudança de hábitos e comportamentos individuais, que quando trazem respostas positivas, essas ocorrem a curto e médio prazos, mas não perduram. Seria mais interessante a formulação de estratégias voltadas para modificações na estrutura física e social onde as pessoas vivem e trabalham, mexendo na base estrutural do dia-a-dia das pessoas e favorecendo as escolhas saudáveis, isto é, tornando essas escolhas mais fáceis e mais acessíveis a todos.

Em junho o Ministério da Saúde e o IBGE divulgaram os resultados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), que afirmou que 11% dos brasileiros não possuem sequer um dente na boca.

A partir da perspectiva de que o contexto social tem seus reflexos na saúde do individuo, o que esse número revela?

Esse número infelizmente revela uma realidade que fez com que alguns autores denominassem o Brasil como o “país dos banguelas” ou o “país dos desdentados”. A saúde bucal não era e para muitos continua não sendo uma prioridade. Indivíduos com uma série de dificuldades sociais e econômicas, além da dificuldade de acesso a atenção em saúde bucal adequada, não tem condições de priorizar a saúde dos seus dentes. Em geral, os dentes são acometidos por doenças como a cárie e/ou a periodontite e os indivíduos não procuram atendimento quando esses agravos ainda são leves. Eles convivem com a dor e com a limitação funcional dessas doenças por muito tempo até que não suportam mais e quando procuram o dentista, a situação é tão grave que a extração dentária é a conduta indicada. A ciência odontológica evoluiu não apenas na reabilitação desses casos extremos (implantes dentários), mas também na prevenção dos agravos bucais, que são mais importantes se pensarmos em medidas efetivas de saúde pública. Mas, infelizmente, os avanços tecnológicos não estão ao alcance de todos e voltamos para a questão das iniquidades sociais.Mesmo não sendo uma justificativa ou um argumento que amenize a situação, há que se lembrar também que esse número já foi muito maior. A comparação dos levantamentos nacionais de saúde bucal realizados em 2003 e 2010 revelaram uma redução de 70% da necessidade de prótese total (quando a pessoa não apresenta nenhum dente na boca). Em 2003, 4,4% dos adultos precisavam de prótese total em pelo menos um arco (superior ou inferior), e essa proporção reduziu para 1,3% em 2010. O mesmo não pode ser constatado para os idosos. Nessa faixa etária os números se aproximaram dos observados em 2003, denotando que, em 2010, mais de 3 milhões de idosos ainda necessitavam de prótese total em pelo menos um arco e mais de 4 milhões necessitavam de prótese parcial. Confira os principais pontos da entrevista que a especialista concedeu ao Diario.

Doutora em Saúde Pública e professora na UFPB, Bianca é taxativa: "A saúde bucal não era e para muitos continua não sendo uma prioridade"

Sim, iniquidades sociais estão presentes em praticamente todo o nosso país e temos observado um número crescente de estudos sob a perspectiva da determinação social da saúde, que evidenciam essa relação entre baixos indicadores socioeconômicos do contexto social e os agravos da saúde.

Especificamente para a saúde bucal, o nosso grupo de pesquisa está concluindo uma revisão sistemática da literatura que constatou que existe evidência da associação de determinantes sociais contextuais e a ocorrência de cárie dentária em adolescentes, mas essa evidencia ainda é incipiente pelo número reduzido (4) de estudos de alta qualidade metodológica publicados. Em outras palavras, esse é um campo de estudo vasto que ainda precisa ser mais explorado para que possamos compreender cada vez melhor a relação entre o contexto e a saúde dos indivíduos, permitindo subsidiar a (re)formulação de políticas públicas e fomentar a intersetorialidade e a articulação do setor saúde com as mais diversas áreas e diferentes níveis de gestão, fatores indispensáveis para a concretização de uma realidade mais justa e equilibrada.

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