Vida Urbana

As histórias por trás da ocupação irregular na Avenida Recife

Foto: Paulo Trigueiro/Esp. DP/D.A Press

Há quase dois anos, centenas de famílias vivem em uma ocupação irregular entre a Avenida Recife e a pista do aeroporto. Os barracos amontoados compõem a comunidade Cacique Chicão. Na segunda-feira (23), depois que a União requereu a reintegração de posse, o grupo foi notificado pela Polícia Federal para desocupar a moradia irregular dentro de 30 dias. 

A maioria dos moradores alega que não tem outra alternativa de moradia, mas admite que está vivendo onde não deveria. O Diario conheceu a história de vida de alguns dos moradores.

Cláudia, a Professora

Foto: Paulo Trigueiro/Esp. DP/DA Press

Cláudia Silva nasceu no Recife em 1969, em uma invasão no Ibura. Tinha 19 irmãos. Apesar das adversidades, frequentou a escola entre os atos necessários de mendicância. “Não consigo contar direito tudo o que aconteceu comigo nessa época. De precisar pedir dinheiro para comer, de estupradores, de viver sem ter atenção de ninguém da sociedade”, lembrou.

Cláudia interrompeu os estudos e a miséria extrema aos 15 anos, quando casou e constituiu família. Aos 40, voltou a estudar, terminou o magistério e ensinou em uma creche e duas escolas. Ficou desempregada quando o contrato de dois anos como professora terminou, na mesma época em que decidiu deixar o marido, alcoólatra. 

Sem dinheiro ou lugar para ficar, morou nas ruas da Zona Oeste do Recife, até passar pela Avenida Recife há cerca de um ano. Assim como muito outros, foi acolhida pelos moradores e recebeu um pedaço do terreno, com algumas madeiras já fincadas, onde se estabeleceu. “Tenho três filhos, dois meus e um de criação. Mas nenhum pode me ajudar financeiramente. Estão desempregados”, explicou.

Há dois meses, Cláudia abriga em sua casa minúscula uma amiga que passou por um processo de separação semelhante ao dela. “As pessoas que tem vida boa dizem que quem fica com marido alcoólatra é porque gosta ou merece, mas só quem passa por isso sabe. Nem sempre há alternativas. Para você ver, meu nome ainda é Cláudia Silva Azevedo”, esclareceu. 

Cachorro de quintal

“Antigamente, chamavam de cachorro de quintal as pessoas que trabalhavam limpando mato das casas ou fazendo trabalhos parecidos”, explicou Gerônimo Lourenço da Silva, 49. Sentado nos trilhos de trem que cortam o terreno, contou sobre sua infância em Gameleira, na Mata Sul pernambucana, onde nasceu. “Vivíamos lá, eu, meus cinco irmãos e minha mãe. Ela lavava roupa para fora e nos sustentava assim.”

Foto: Paulo Trigueiro/DP/DA Press

Desde que se mudou para Recife, ainda criança, Gerônimo sobrevive fazendo três trabalhos: tirar cocos, pintura de paredes e jardinagem. “Se aparecesse trabalho com fossas eu faria, também, ou qualquer outro. Mas só aparecem esses porque são os que eu mais gosto e sei fazer muito bem”, explicou. “Vou caminhando até Boa Viagem. Lá as pessoas me oferecem esses trabalhos, muitas vezes para me ajudar, mesmo.” 

Antes de chegar na ocupação, Gerônimo estava vivendo em um barraco alugado, mas começou a passar necessidades para tentar pagar a dívida. “Ou comia ou pagava. Comecei a dever e aí eu e minha esposa conhecemos essa ocupação”, afirmou. “Hoje vivo aqui com ela e minha neta, mas amanhã, ninguém sabe.”

Nômades do século 21

Foto: Paulo Trigueiro/DP/DA Press

A mãe de Valdete Floriano da Silva, 47, morreu quando ela ainda era adolescente. Na época, as irmãs venderam a casa - outra invasão - e ela nunca se recuperou do baque. De lá para cá trabalhou como doméstica, cuidadora de idosas, viveu na rua com frequência e teve problemas com o alcoolismo. 

Em 2008, conheceu o catador de materiais recicláveis Antônio Romão da Silva, o Manteiga, e começou a morar com ele nas ruas. Desde que encontrou uma casa, no ano passado, frequenta um centro de apoio psicossocial (Caps), administra medicação controlada e parou de beber. “Tudo o que a gente comprava ou ganhava das pessoas era roubado. Nossa casa era embaixo da carroça. Moramos em vários locais, mas principalmente em Setúbal. As pessoas nos conheciam e davam lençóis e outros utensílios. Mas era tudo roubado. A rua também é perigosa para nós, que moramos na rua”, explicou.

Já Manteiga teve uma vida de trabalho ininterrupto em diversas cidades brasileiras antes de conhecer Valdete. Foi cobrador de ônibus, operário de fábrica têxtil e até tratorista. Conheça a história dele clicando no mapa abaixo:

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No Hospital das Clínicas, doença social

José Mariano da Silva tem 50 anos, mas sucessivos anos de sol na pele durante todo o dia lhe deram a aparência de mais. Com um enorme chapéu de palha, se emociona na primeira pergunta sobre sua família. Foi criado por uma tia depois que os pais morreram. 

Trabalhou em diversos locais. “Já fiz de tudo. Em Paudalho, pegava carniça com as mãos quando era novo”, lembrou. Já com cerca de quarenta anos, morou nas ruas quando não conseguia mais encontrar biscates suficientes para sobreviver. Dormia na estação do metrô até que escapou de sofrer um atentado contra a vida, confirmado a teoria de Valdete, de que as ruas são perigosas para quem mora nas ruas. “Acordei e tinha um homem olhando o que eu tinha comigo. Pediu dinheiro para ‘dar uma bola’ e ficou nervoso porque eu não tinha. Me levantei, corri e nunca mais voltei lá”, contou.

Paciente do Hospital das Clínicas, na Cidade Universitária, por ser portador do que ele mesmo chama de “lesão no cérebro”, Mariano conheceu o local e passou a dormir por lá. “Via que muita gente passava a madrugada na fila para ser atendido e resolvi ficar dormindo lá. Ali estava seguro”, explicou. Conheceu a ocupação e passou a fazer parte dela como todo os outros ouvidos pela reportagem: sendo acolhido. 

Pela condição de saúde, não pode trabalhar, mas Mariano trabalha mesmo assim. “Não posso nem levar sol muito forte na cabeça, por isso estou usando o chapéu. Mas trabalho assim mesmo. Antes desta entrevista eu estava justamente ajudando a construir a casa de um outro morador”, lembrou. 
 
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A opinião de especialistas

No fim de 2013, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estimou que mais de 560 mil pessoas moram em ocupações e favela. No Censo de  2010, os moradores de favelas na Região Metropolitana são 10% da população de todo o estado. O fenômeno pode ser compreendido a partir de perspectivas distintas. 

Foto: Arquivo/DP/D.A Press

Foto: Paulo Trigueiro/Esp. DP/DA Press

A prefeitura de uma cidade conhece suas próprias demandas. Quando deixa de atendê-las, não oferecendo assistência à população, as pessoas se estabelecem onde entendem que é a melhor opção.

A cidade pode ser comparada a um organismo vivo, que vai se moldando de acordo com as oportunidades. É daí que surgem as ocupações. Esse é um dos vários motivos pelos quais é preciso um planejamento urbano e, principalmente, uma fiscalização para que ele seja seguido. No Recife, tanto um quanto outro praticamente não existem. Dessa maneira, mesmo os formais constroem fora das normas, de acordo com suas vontades e recursos.

Foto: Alcione Ferreira/DP/D.A Press

Foto: Cecilia Sa Pereira/DP/D.A Press

É doloroso que uma cidade não tenha conseguido dar condições às pessoas para morar nela. Mas foi isso que aconteceu com o Recife. No primeiro Censo, de 1913, consta que quase metade das casas do Recife eram mocambos.

As ocupações não surgiram, simplesmente. O fenômeno das ocupações irregulares foi criado pelo Estado no século XIX com a lei de terras de 1850, que transformou terrenos em mercadorias, com donos.  O problema é que, quem já estava instalado poderia se regularizar, mas os pobres não tinham acesso aos mecanismos jurídicos para fazer isso. Dessa forma, suas casas passaram a ser consideradas irregulares. 

Outra questão histórica importante para entender as ocupações é a abolição da escravidão. Os ex-escravos não tinha onde morar quando foram libertados. 

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