Setembro é o Mês Mundial do Alzheimer e, nesta data, voltada à conscientização e ao esclarecimento sobre a doença que afeta cerca de um milhão de pessoas no Brasil, especialistas da saúde e familiares de pacientes ressaltam a importância da desestigmatização e da busca pela qualidade de vida de quem convive com a enfermidade.
Amanda Campina dos Santos Montalvão, psicóloga do Sistema Único de Assistência Social (Suas) no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), alerta que o desconhecimento está entre os maiores vilões que assolam as famílias dos pacientes. “A primeira coisa a se trabalhar é conhecimento, pois isso é o que permite que as famílias entendam os comportamentos e as necessidades do paciente. Muitos acham que eles estão sendo teimosos ou fazendo pirraça. E não é bem assim”, ensina.
A psicóloga comenta também que o início do processo costuma ser muito intenso e sofrido. Ao mesmo tempo em que lidam com o baque de descobrir o diagnóstico, família e paciente, muitas vezes, precisam passar por uma série de adaptações, tanto de rotina quanto de convivência.
Mas não é necessário viver isso sozinho. Grupos de apoio, como os conduzidos pela Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz), são uma grande rede de ajuda. E esse tipo de iniciativa não trabalha somente o bem-estar do cuidador, mas o ensina técnicas para que ele lide melhor com o paciente e possa dar uma qualidade de vida satisfatória para o ente amado.
Amor que não é esquecido
“Ele não me reconhece o tempo todo, mas compreende que temos um laço especial. Apesar de afetuoso com as enfermeiras e cuidadoras, ele sabe que o beijo na boca é só comigo, e eu vejo o brilho nos olhos dele. Ele me vê, sorri e já pede beijo na boca”, conta Brígida.
Para ela, enxergar Gougon como o seu amado e não somente como um paciente é o seu parâmetro para tomar as decisões pelo marido — o que ela classifica como uma tarefa difícil, principalmente nos primeiros anos após o diagnóstico.
Casados há 25 anos, Brígida afirma que o bem-estar emocional do marido é a prioridade, ao lado da saúde física. Aprendendo com a própria experiência, com o auxílio da terapia e dos grupos de apoio, ela percebe que quando Gougon está feliz, tudo é mais fácil para todos, inclusive para a equipe multidisciplinar que o acompanha.
Há quatro anos, Gougon precisou parar de beber a taça de vinho que tomava diariamente e abrir mão do sorvete por causa da glicose elevada. Brígida substituiu por uma gelatina que ele gosta. “Ele amava vinho tinto, aquela tacinha era o momento feliz do dia dele. É fundamental entender que, ali, ainda existe uma pessoa que tem desejos, e respeitá-los na medida do possível.”
Para ela, compreender os desejos da pessoa que está sendo cuidada é tão importante quanto suprir as necessidades. Brígida ressalta que, não basta sobreviver, é importante viver e, ao conhecer o paciente, bem é possível encontrar alternativas de dar prazer e mostrar que a felicidade pode ser alcançada.
Quando ainda estava lúcido, Gougon sofria ao perceber que seu cérebro já não funcionava como antes e tinha momentos de confusão, nos quais Brígida o acalmava dizendo que ele estava sendo tratado e tudo ficaria bem. Ela explica que dizer a verdade e causar a ele uma intensa angústia por uma informação que ele ia esquecer não valia a pena.
Brígida também continuou estimulando o lado artístico do amado. Em 2013, Gougon publicou um livro de charges. Ele continuou desenhando até 2018, trocou o lápis por giz de cera e, assim, junto com a criação de mosaicos, estimulava a mente e se distraía.
Saber aproveitar
O casal viajou e realizou o sonho de conhecer diversos lugares no mundo. Os dois dançavam todos os dias, até quatro anos atrás, quando Gougon precisou da cadeira de rodas. Antes da pandemia, o casal ia almoçar fora e ouvir chorinho todos os domingos. Hoje, além de todos os cuidados médicos e terapias, Brígida busca alternativas para ver Gougon sorrir, e afirma que mais importante do que quantidade é a qualidade. “É mais importante viver bem do que viver muito.”
Entre mãe e filho
Percebendo algo errado, achou que, com o avançar da idade, a mãe se sentia mais sozinha e estava fazendo chantagem emocional para mantê-lo por perto. Em um momento, ela era a mulher mais comunicativa e persuasiva do mundo, em outro, parecia ter outra personalidade e até se “fazer de boba”, nas primeiras impressões do filho.
Mas o administrador ficou desconfiado da situação e resolveu passar um período em Brasília para entender melhor. “Sofri muito ao receber o diagnóstico. Era leigo e nunca tinha vivido isso de perto, entrei muito cru nisso tudo. Eu me mudei de volta e começamos o processo de adaptação”, lembra.
Inicialmente, ainda muito consciente, Olga teve dificuldade em aceitar que precisava do auxílio do filho. Continuou morando sozinha e com profissionais de saúde fazendo o acompanhamento diário, além das visitas constantes de João Paulo. Ao perceber que a mãe já não conseguia ter o controle dos horários das consultas nem do pagamento dos profissionais da saúde que a acompanhavam, decidiu levá-la para morar com ele.
“Depois do choque e da aceitação, começamos uma terceira fase, bem complicada. Ela me acusava de querer controlá-la, falava mal de mim para os outros. O cuidador, muitas vezes, vira alvo, e o suporte psicológico me ajudou bastante a lidar com isso”, diz.
Os casos em que pacientes brigam e se revoltam com os cuidadores da família são comuns. Depois de participar de diversos grupos de apoio e aprender a lidar melhor com a mãe, João Paulo é categórico ao ressaltar a importância desse tipo de suporte. “Ver relatos tão semelhantes ao que estamos vivendo é reconfortante. Você entende que existem fases e que pode melhorar.”
Nos grupos de apoio e com o suporte psicológico e social, João Paulo aprendeu que existem diversas formas de lidar com momentos de crise e conflito. Uma das primeiras coisas que ele incorporou em seu pensamento foi entender que quem entrava em conflito com ele não era a mãe que ele conhecia, mas, sim, a doença. E isso diminuiu seu sofrimento com os momentos mais difíceis.
Muito racional, João Paulo admite que uma das coisas mais complicadas para ele foi aprender a esquecer a razão e entrar na realidade da mãe. “Mesmo que ela fale algo absurdo, eu concordo e pronto. Fica mais leve.” O administrador aprendeu a não insistir quando a mãe se recusa a fazer algo e aprendeu a camuflar as necessidades de exercício ou terapias em outras atividades. Ela se recusa a fazer exercícios, então o filho a convida para ir ao clube e, por lá, a leva em diversas caminhadas.
Ele entrou em contato com as amigas de Olga e promove encontros para estimular a vida social e o exercício do diálogo e da interação. Para a musicoterapia, ele diz a Olga que chamou um amigo para visitá-los, e o amigo toca sanfona, o instrumento preferido dela. “São diversas maneiras que vamos encontrando para que ela faça o que precisa sem precisarmos bater de frente, o que não faz bem nem para mim e nem para ela.”
O diagnóstico veio há dois anos e meio e, há um ano, Olga mora com João Paulo e sua esposa. Ela ainda tem uma certa independência e vive no próprio espaço em um duplex, com auxílio e suporte, a um lance de escadas de distância.
Número crescente
Tratamento humanizado e medicamentos
Em junho deste ano, uma nova droga foi aprovada pelo órgão regulador dos Estados Unidos, mas ainda está envolvida em uma série de polêmicas, e a comunidade científica, apesar do otimismo, segue com cautela. Os argumentos que embasam até um certo ceticismo são a ausência de estudos e dados que comprovem adequadamente a eficácia do medicamento e em que tipo de pacientes foi observado progresso.
“Esse medicamento, chamado aducanumabe, pode ser muito importante para a medicina e para as famílias, mas é preciso cautela. Ele é uma perspectiva de tratamento, mas que ainda carece de mais estudos e demonstrações de eficácia”, completa Otávio.
A terapia tradicional consiste em um conjunto de medicamentos que buscam desacelerar o avanço da doença. Mas Otávio ressalta que o primeiro fundamento do tratamento não é o remédio, mas, sim, o esclarecimento em relação ao Alzheimer e o combate ao estigma da doença. “O esclarecimento não só da família, do paciente, mas de toda a sociedade. É um erro colossal achar que depois do diagnóstico já era, e que aquela pessoa se torna inválida”, declara.
O médico não diminui a importância dos remédios, mas esclarece que, enquanto algumas pessoas acreditam que são a maior parte da solução, eles equivalem de 30% a 40% do tratamento. “O medicamento vai diminuir o impacto da perda progressiva das funções, mas educar e esclarecer também diminui significativamente esse impacto.”
Entender o que está acontecendo, acolher, lidar com as dificuldades do dia a dia e dar condições para que as pessoas se preparem para o futuro e para o avanço da doença são medidas que diminuem significativamente o nível de sofrimento da família e do paciente.
Na prática
Para manter o cérebro se exercitando, inicia-se um trabalho multidisciplinar. Larissa de Freitas Oliveira, geriatra e referência técnica da especialidade de geriatria da Secretaria de Saúde do DF, explica que o cuidado integral envolve, além dos médicos, psicólogo, nutricionista, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, educador físico e assistente social.
O tratamento interdisciplinar e o apoio e orientação do familiar responsável pelo paciente, junto com os medicamentos, são a melhor maneira de manter a qualidade de vida e o máximo de funções cognitivas por mais tempo. Assim como Otávio, Larissa ressalta a grande importância de falar mais sobre a doença, assim como lutar por mais políticas públicas que possam dar o suporte necessário às famílias que precisam.
Otávio acrescenta que “tudo o que é bom para o coração é bom para o cérebro”. E indica, além da reabilitação cognitiva e do estímulo mental, alimentação saudável, sono adequado, não fumar ou beber e praticar atividades físicas.
A memória em fotos
Ela se senta com Maria e vai mostrando as fotos e explicando cada imagem. “Mostro quando ela era novinha, estudando enfermagem e com a família. Ela costuma reconhecer as irmãs. É uma forma de a gente guardar esse passado e essa história”, diz a coreógrafa.
Formada em fotografia, Luísa enxergou na avó a inspiração para o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). A exposição chamada Maria trouxe a foto da avó e as fotos que ela costumava repetir o tempo todo. “Minha intenção foi mostrar a essência de como é a minha experiência de tê-la por perto. Compartilhando na composição fotográfica esses momentos que me são curiosos em nossos encontros”, conta a jovem.
Há cerca de 10 anos, a família percebeu que Maria estava com problemas de memória e começou a ficar mais atenta a alguns detalhes. Para estimular o cérebro, ela começou um curso de francês e alguns outros pelos quais se interessava. Sempre muito independente, Maria começou a pedir ajuda com alguns esquecimentos e, um tempo depois, em 2012, Laura recebeu a ligação de um policial. Maria tinha batido o carro. Quando chegou ao local, a coreógrafa viu a ficha cair e sentiu o impacto quando o policial comentou que entendia a situação, pois “também tinha um pai com Alzheimer”.
Com a carteira suspensa, Maria sentiu o primeiro golpe em sua independência, e a família foi em busca de ajuda médica para entender o que estava acontecendo e obter um diagnóstico mais claro. Laura e Luísa começaram a se revezar para que Maria sempre tivesse uma companhia, e a matriarca continuou mantendo grande parte da sua rotina normal.
Inversão de papéis
Com a sensação de que entrava em outro universo e enfrentando a solidão, Laura encontrou suporte no Coletivo Filhas da Mãe. Ao conhecer pessoas que estavam passando pela mesma vivência que ela, Laura começou a aprender pequenas técnicas para cuidar bem da mãe, além de ter apoio emocional.
Surpresa como até pequenas coisas do dia a dia mudam, Laura percebeu que a mãe já não conseguia ficar na pia para escovar os dentes. No grupo, descobriu que uma escova elétrica e uma bacia eram a solução ideal. “Não imaginava essas pequenas mudanças, hoje ela tem uma cadeira no banheiro. E tudo isso a gente divide, vai comentando e aprendendo juntos.”
Para contornar alguns momentos de teimosia, Laura aposta nos gostos da mãe. Para estimular o banho, a filha diz que está na hora de se arrumar para ir à igreja, o que sempre leva Maria para o chuveiro. Para ela beber mais água, Laura investe em chás e em copos coloridos para despertar o interesse. O mesmo vale para os alimentos.
Na hora de estimular e animar Maria, Laura e Luísa contam com a música. “Ela gosta muito de dançar. Quando éramos crianças, colocava marchinhas de carnaval e cantava. Montei várias playlists para ela”. Assistir a TV também é um passatenpo para as três. Luísa e Laura vão comentando tudo com Maria para ela compreender e se manter envolvida e presente.
Com o cuidado, Laura afirma que os laços afetivos ficam ainda mais fortes e ressalta a importância de entrar no mundo da mãe e buscar diferentes formas de se conectar e comunicar, mesmo que seja entrando na onda e se tornando a irmã que Maria, às vezes, enxerga nela.
Laura comenta que precisou conhecer sua mãe novamente em meio às mudanças de comportamento, mas que, apesar de não reconhecê-la fisicamente e muitas vezes confundir ela e Luísa com suas irmãs, Maria sempre reage ao ouvir sua voz. “Outra coisa que me emociona é que ela sempre acorda de madrugada para fazer xixi, me olha, fala ‘obrigada, minha filha’ e, algumas vezes, diz meu nome. Naquele milésimo de segundo, ela me reconhece e é um restinho da memória que ela ainda tem.”
Rede de apoio
Alternativas ao conflito
Quando um parente decide que quer “ir para casa” mesmo estando em casa, permita que ele arrume suas coisas e leve-o para dar uma volta de carro ou debaixo do prédio. Depois do passeio, diga que estão indo para casa.
Quando o paciente estiver muito repetitivo ou insistindo demais em algum problema específico, busque mudar de assunto, apresentando coisas de que ele gosta ou se interessa de forma leve e agradável.
Quando a pessoa não quer tomar banho, busque incrementar o momento com coisas de que ela gosta — um sabonete cheiroso, uma toalha colorida ou até uma brincadeira de banho de mangueira no quintal.
A médica explica que, nas fases mais avançadas, os pacientes têm mais aceitação com alimentos doces e, salvo nos diabéticos, por que não ofertar alguns doces para acalmar ou alegrar?